Agora... estou confortavelmente sentada
numa cadeira, cujas rodinhas na pata espalmada,
facilitam a deslocação ao longo da mesa onde se
acomoda tudo o que preciso para entreter o tempo
que sobra entre o preparar das refeições, do
passar a ferro, do arruma a
cozinha, do lava a louça, do coser a roupa...
enfim das tarefas que bem cedo aprendi, de que
tanto aproveitei e de que ainda me não aposentei.
Estou
na Sala dos Mimos!
Da
esferográfica ao computador, passando pelo rádio
e aquecedor, tudo é conforto actual com cheirinho
a electrónica!
Chamo-lhe
Sala dos Mimos porque toda essa electrónica
instalada é fruto do carinhoso amor dos filhos,
amparando os anos que pesam e os dedos onde a
artrite se acomodou e desenvolve paulatinamente.
O
telemóvel está presente para as urgências:
«Como
faço agora?!» E, nele ali mesmo à mão, a voz
da filha, - ou do «filho» que ela me trouxe na
brisa fresca de um Verão - pertinho do ouvido,
desfaz as dúvidas.
«E
agora? Isto está avariado?» E a voz do filho
resolve num despacho, a qualquer hora nem que vá
de viagem! E aquela «filha» por ele vinda de
presente num Natal, dá outros mimos... que o
computador lhe faz nervoso miudinho!... «Então,
mãe, a cadeira é fofinha? Até aquece as costas!
Ponha os pés ali que fica mais confortável. Está
bem assim?»
E
a voz dos netos também em gargalhadas: «Ó avó,
clique em... e depois em... » Pois, era mais que
evidente! «Liga sempre, avó, que nós cá
estamos... » Afinal era tão simples. A minha
cabeça é que vem de outra geração. Que me vão
ligar à internet!... Vai haver nova fase de
complicações! Mas, se cada complicação
resultar num mimo... venham as complicações!
Hoje,
ao acordar, o disco da memória abriu-se na
caixinha-da-música. Poisou a agulha da grafonola
numa faixa gasta... e largou: «Dez anos são
passados desde o dia em que... ». Só à terceira
saiu
a canção por aí fora... Sorri, levantei-me... e
aqui estou.
Agora...
vou colocar a agulha noutra faixa gasta, e
prosseguir...
Nela
cinquenta anos já ficaram para trás, o tempo em
que morava naquela casinha pobrinha com tecto de
telha-vã. Sentava-me num banquito, à lareira de
paus secos, com um casaco puídinho nas costas e
colocava sobre os joelhos uma tabuinha alumiada
pelo candeeiro de petróleo. A minha tabuinha
tinha inúmeras funções:
Podia
ser mesa-de-almoço e de jantar. Essa função
ser-lhe-ia a mais dolorosa por servir de base a um
tacho de alumínio com água a ferver, cuja tampa
era um prato de esmalte contendo o menu:
Batata
Redonda - (cozida, pelada ou com pele)
e, por conduto, um ovo cozido; ou
Batata
Guisada - e conduto, motrequinhos de febra frita
conservada em banha de porco num pote de barro; ou
Açorda
de Nada - sem conduto, só com cheiro a dente de
alho; ou
Arroz
de Nada - condutado com peixe da ribeira, quatro o
máximo, de 7 a 10cm cada!
Arroz
para variar e não apanhar a doença da batatose!
Também podia haver sopa de couve, de nabos, de abóbora
que as mães dos alunos cultivavam com fartura.
«Deus
a salve, minha senhora. Aceite que é de boamente
e sem esprito
de ofensa. »
«Salve-a
Deus, Sr.ª F... e lhe dê em dobro.»
Era
assim o protocolo naquela terra.
A
Ti Ana Pobre (assim chamada porque o era) contribuía
para a sopa com vinte batatas numa saquita de
retalhos. «Desculpe, minha senhora, a taleiga é
maneirinha mas muito o Senhor deu a quem nada
mereceu».
Era
assim o coração daquela gente.
Mas,
continuemos:
Como
tabuinha-escrivaninha já sabia marcar e
contar os erros ortográficos nos ditados...
corrigir redacções... Sabia corrigir as
contas intermináveis com oito algarismos no
multiplicando e quatro no multiplicador, ou dez no
dividendo e quatro no divisor... tudo com casas
decimais, com as respectivas provas
reais...
Era realmente importante saber bem a tabuada salteada
ou salpicada!
Descodificava intrincados problemas de Aritmética
com cinco e seis operações e inventava estratégias
para que fossem compreensíveis os raciocínios
arquitectados.
Tabuinha-Estante
do livro escolhido para entretenimento ou estudo
da sua dona, sabia os segredos das cartas para o
namorado! Quando a caneta
de tinta permanente parecia
falhar, chegava-se de longe ao calor do lume, o líquido
fluía... experimentava-se na tabuinha... sempre
com a mesma palavra "Manuel", logo
raspada com um canivete, letra por letra para
ser... mais gostoso!
Tabuinha-
ambão amparando o pequeno livro de orações,
escutando mudamente petições, compromissos às
vezes esquecidos, um louvor, uma acção de graças...
Tabuinha-confidente,
apoio dos cotovelos quando as mãos seguravam a
cabeça pesada de cansaço, de sono, de saudade
dos irmãos, de tristeza...
Tabuinha-
testemunha de horas de solidão, recebendo
e absorvendo alguma lágrima fugidia e obstinada.
A
tabuinha congratulou-se com êxitos imperceptíveis
e abandonou fracassos confiados à misericórdia
Divina cujos ecos só serviriam para alimentar
impiedades.
Nada,
então,era electrónico, meu Deus!
Mas
obrigada, Senhor, pela minha Tabuinha dos Anos
Cinquenta.
Julho
2000
Maria
Ezequiel