Maria Ezequiel

A minha tabuinha

 

      Agora... estou confortavelmente sentada numa cadeira, cujas rodinhas na pata espalmada, facilitam a deslocação ao longo da mesa onde se acomoda tudo o que preciso para entreter o tempo que sobra entre o preparar das refeições, do passar a ferro, do arruma  a cozinha, do lava a louça, do coser a roupa... enfim das tarefas que bem cedo aprendi, de que tanto aproveitei e de que ainda me não aposentei.

Estou na Sala dos Mimos!

Da esferográfica ao computador, passando pelo rádio e aquecedor, tudo é conforto actual com cheirinho a electrónica!

Chamo-lhe Sala dos Mimos porque toda essa electrónica instalada é fruto do carinhoso amor dos filhos, amparando os anos que pesam e os dedos onde a artrite se acomodou e desenvolve paulatinamente.

O telemóvel está presente para as urgências:

«Como faço agora?!» E, nele ali mesmo à mão, a voz da filha, - ou do «filho» que ela me trouxe na brisa fresca de um Verão - pertinho do ouvido, desfaz as dúvidas.

«E agora? Isto está avariado?» E a voz do filho resolve num despacho, a qualquer hora nem que vá de viagem! E aquela «filha» por ele vinda  de presente num Natal, dá outros mimos... que o computador lhe faz nervoso miudinho!... «Então, mãe, a cadeira é fofinha? Até aquece as costas! Ponha os pés ali que fica mais confortável. Está bem assim?»

E a voz dos netos também em gargalhadas: «Ó avó, clique em... e depois em... » Pois, era mais que evidente! «Liga sempre, avó, que nós cá estamos... » Afinal era tão simples. A minha cabeça é que vem de outra geração. Que me vão ligar à internet!... Vai haver nova fase de complicações! Mas, se cada complicação resultar num mimo... venham as complicações!

Hoje, ao acordar, o disco da memória abriu-se na caixinha-da-música. Poisou a agulha da grafonola numa faixa gasta... e largou: «Dez anos são passados desde o dia em que... ». Só à terceira  saiu a canção por aí fora... Sorri, levantei-me... e aqui estou.

 

Agora... vou colocar a agulha noutra faixa gasta, e prosseguir...

Nela cinquenta anos já ficaram para trás, o tempo em que morava naquela casinha pobrinha com tecto de telha-vã. Sentava-me num banquito, à lareira de paus secos, com um casaco puídinho nas costas e colocava sobre os joelhos uma tabuinha alumiada pelo candeeiro de petróleo. A minha tabuinha tinha inúmeras funções:

 

Podia ser mesa-de-almoço e de jantar. Essa função ser-lhe-ia a mais dolorosa por servir de base a um tacho de alumínio com água a ferver, cuja tampa era um prato de esmalte contendo o menu:

Batata Redonda - (cozida, pelada ou com  pele) e, por conduto, um ovo cozido; ou

Batata Guisada - e conduto, motrequinhos de febra frita conservada em banha de porco num pote de barro; ou                                                                       

Açorda de Nada - sem conduto, só com cheiro a dente de alho; ou

Arroz de Nada - condutado com peixe da ribeira, quatro o máximo, de 7 a 10cm cada!       

Arroz para variar e não apanhar a doença da batatose! Também podia haver sopa de couve, de nabos, de abóbora que as mães dos alunos cultivavam com fartura.

«Deus a salve, minha senhora. Aceite que é de boamente e sem esprito de ofensa. »

«Salve-a Deus, Sr.ª F... e lhe dê em dobro.»

Era assim o protocolo naquela terra.

A Ti Ana Pobre (assim chamada porque o era) contribuía para a sopa com vinte batatas numa saquita de retalhos. «Desculpe, minha senhora, a taleiga é maneirinha mas muito o Senhor deu a quem nada mereceu».

Era assim o coração daquela gente.

Mas, continuemos:

 Como tabuinha-escrivaninha já sabia marcar e contar os erros ortográficos nos ditados... corrigir redacções... Sabia corrigir  as contas intermináveis com oito algarismos no multiplicando e quatro no multiplicador, ou dez no dividendo e quatro no divisor... tudo com casas decimais, com as respectivas provas reais... Era realmente importante saber bem a tabuada salteada ou salpicada! Descodificava intrincados problemas de Aritmética com cinco e seis operações e inventava estratégias para que fossem compreensíveis os  raciocínios arquitectados.

Tabuinha-Estante do livro escolhido para entretenimento ou estudo da sua dona, sabia os segredos das cartas para o namorado! Quando a caneta de tinta permanente parecia falhar, chegava-se de longe ao calor do lume, o líquido fluía... experimentava-se na tabuinha... sempre com a mesma palavra "Manuel", logo raspada com um canivete, letra por letra para ser... mais gostoso!

Tabuinha- ambão amparando o pequeno livro de orações, escutando mudamente petições, compromissos às vezes esquecidos, um louvor, uma acção de graças...

Tabuinha-confidente, apoio dos cotovelos quando as mãos seguravam a cabeça pesada de cansaço, de sono, de saudade dos irmãos, de tristeza...

Tabuinha- testemunha de horas de solidão, recebendo e absorvendo alguma lágrima fugidia e obstinada.

A tabuinha congratulou-se com êxitos imperceptíveis e abandonou fracassos confiados à misericórdia Divina cujos ecos só serviriam para alimentar impiedades.

Nada, então,era electrónico, meu Deus!

Mas obrigada, Senhor, pela minha Tabuinha dos Anos Cinquenta.

 

Julho 2000

 

Maria Ezequiel

 

 
Copyright 2000