Há
dois dias que a não via passar na sua caminhada diária até à sede de
freguesia, com o pretexto de beber a bica, de cevada, ao balcão do
supermercado. E o pretexto, para este pretexto, era também sempre o mesmo: «para
mexer os nervos e nã deixar
enferrujar os engonços»
-
Dizem que, na minha idade, é bom muita missa, pouco garfo e muito sapato!...
– acrescentava.
E, com esta filosofia, ia nos oitenta e oito, com uns bons centímetros
a menos - «nã sei porquê, mas
dantes chegava bem à parteleira
dos copos...» - , nervos de aço e engonços lubrificados!
Sempre
a conheci com passo enérgico, cabeça um pouco pendente e os olhos no chão.
Mas quando os levantava eram vivos, num semblante amargurado. Seu riso fugidio
morria sempre num sorriso entristecido, como se fora pecado rir ou gargalhar.
Parada
não. «Há sempre terra a pedir golpes de enxada», dizia. No trabalho duro
descarregava frustrações e desânimos, e temperava a fibra de mulher
corajosa. Era aquilo que o povo chama uma mulher arresolvida.
Tinha
um quê de doçura na voz que, tagarela como sou, junto dela emudecia e ficava
à escuta. E muito já tinha ouvido...
Era
a hora da bica de cevada. Apetecia-me conversa. Seria só atravessar a rua e
ir ouvi-la. Liguei para o supermercado
-
Está aí a Ti Amélia?
-
Não. Já há bastantes dias que aqui não vem. A senhora não a tem visto? Só
se está doente...
Ficou
urgente sair de casa...
Fui
encontrá-la, só «a descansar da fadiga dos anos!». Os lençóis e a colcha
não destoavam da alvura das paredes. Um crucifixo pequenino
preso com um laço aos ferros da cama, um terço junto do candeeiro eléctrico
na mesa de cabeceira mais, na parede, «o retrato dos mês
filhos todos, assim como num molho de espigas...» eram os ornamentos do
quartinho acanhado onde se respirava fé e muito amor.
-
Ó minha senhora, traga daí um banco que o soufá
da salita nã cabe aqui. Fica
mais mal assentada mas é o que se pode arranjar.
E
continuou, numa voz doce sem pieguice, uma doçura que vinha de dentro,
natural, desafectada, num falar que era um desabafo sem lamúrias.
-
Olhe que o dia está mau para a minha pieira. Este noveiro
nã deixa passar o ar. Há dois dias que o sol anda por lá. Se ele ó
menos espreitasse envergonhado... mas quê?! Até chega aqui a aragem do
mar!...
-
E se eu fosse pôr água ali no saco? Aquece-se num instante.
-
Ficava-lhe agardecida, sim senhora... – e depois de um sorriso – às vezes parece que se me arrepiam
os ossos, mas ê penso que os ossos
sã tã duros que nã
se devem arripiar, antão
nã é?... A carne está bem e a pele , olhe, fica assim... mirrada e
mole!... Os anos sã muitos, o que
hei-de esperar?... Esperar que Deus dê ordes
ós anjos. Mas, se escapo destas Vésperas de Inverno inda
volto, no tempo seco, a mais uma viage.
Ai vou, vou, se Deus nã mandar os
anjos...
E
depois de curta pausa, num curto espanto:
-
Aquilo é que são Terras! Mas olhe que vi lá mais miséria q’aqui!...
Conforme é grande nas casas, nas ruas, naquela barrage...
das... cataratas (nã sei porque
lhe prantaram tal nome) assim tamém
a miséria é grande. Qu’ele até
há miséria que nã se vê!...
Essa é que é essa, sim senhor. Sã
terras de luxo! Mas está tudo na mão dos graúdos... Fora estes, os que
vivem bem ainda são os que trabalham para eles. Quem se agarra tem sempre
onde matar o corpo e compensa. Dá p’rós
gastos do uso, p’ra um poucachino
de advertimento e para aforrar e
fazer pé de meia, olé!
E,
ligando os pensamentos:
-
Ê sempre ensinei os mês
filhos: - Cabeça afinada, vontade de ser mais e fé em Deus... o resto dá-no
a “máquina” dentro do peito – dá sangue e sentimento... E graças ao
Altíssimo eles têm cumprido e vão bem no desenrasque.
- E uma cevadita, Ti Amélia? Sobrou água.
-
Vem a calhar p’ra fazer cuspo. P’ra
mim com açucre, mas p’rá
senhora...
-
Bebo sem ele, Ti Amélia, não me importo...
-
Ai importa, importa, o que tem é que ser. O que tem que ser impõe muito
respeito, dizia a minha mãe! Mas antão...,
a senhora tamém tem que amargar
alguma coisa na vida!!!... Ah! Nã
faça caso, qu’ê estou a mangar!
-
Eu sei Ti Amélia. E, pelo que me conta assim tão bem disposta, gostou mesmo
da viagem. Eu bem digo... Até os olhos se lhe riem. Isso é que foi matar
saudades!
-
Foi um mês de regalo! Mas as Américas ficam muito longe. Olhe, senhora! A
gente aqui diz: Foi p’ra
América.
Mas nã está bem, porque elas sã
três. A que fica p’ra a banda do
norte, a que fica p’ra banda do
sul e uma assim no meio delgadinha, a pegar às outras. Mê
filho mostrou-me no mapa. Riscou uma cruz onde a gente estava: « - Esta toda
é a América do Norte». Depois apontou as outras duas. Ê
perguntei: « - Ó filho e onde está
Portugal?» Ele disse: « - Aqui», e pôs lá o lápis. Dá-me os óculos,
filho. Tã pecanino
ó pé do mundo todo! Parece um codrado,
mas mais cumprido... Atão ê
vim de avião dali pr’aqui?! E
isto tudo azul é céu? Ele disse: « - È água, mãe».
A
Ti Amélia, aqui, mediu as grandezas:
-
Ih! Como Deus é grande, senhora professora! Ele fez tanta água e cá
a gente a ralhar com a seca! Ele afasta a chuva p´ra
nos castigar, que bem merecemos...
-
Olhe lá, as suas filhas estão todas na mesma cidade?
-
Nã senhora, algumas estão longe
mas fui a casa delas todas e despois
inda s’ajuntaram
filhos e netos. Éramos seis, mais genros e noras, doze; mais dezasseis netos
e seis bisnetos, trinta e quatro, se nã
erro o contado; e sobrinhos e
filhos, nã sei já cantos...
foi uma festa muito bonita! Muitas luzes, muito comer e bebidas de todas as
raças,
um bolo assim que parecia um prédio, mais música de conjunto, mais ranchos
com rapaziada de lá, americanos, filhos de portugueses e todos me beijavam e
me davam passou-bens. Olhe, senhora, a Ti Amélia rainha da
festa, salvo seja, já se vê, que havia lá
gente muito importante. Uns patrões dos mês
filhos, gente de ... de ..., como é que eles desseram
? ..., de vulto. Parece que foi assim. A senhora compreende o que eu quero
dizer. Graças a Deus todos vivem bem. Até me consolei de tal ver!
A
Ti Amélia puxou pelo fôlego, franziu a testa, suspirou, amornou a voz e
afrouxou a cadência.
-
Dei por bem empregue tanta água que me correu dos olhos para os criar; tanta
revolta das faltas que passei, a pontes
de tirar broa à barriga, p’ra
eles terem que trincar! Tantas vezes a regar, e na cesta, ali ao lado, o mais
novo a chorar baba e ranho. O malvado só se calava c’a
rolha de farrapo molhada no açucre!
No açucre?!... nas colheritas que
me davam a troco de mais uma hora de trabalho a partir lenha... Machado
pesado, lenha dura, minha senhora... para uma viúva com cinco filhos... E
noites? Noites sem fim... a untar-lhes a barriga com azeite quentinho para
aliviar dores; a espremer leite do seio p’ro
ouvido do mê Tino. Era só matéria
a escorrer p’ra fora e, a senhora
sabe, que o leite da mãe, assim morno, acalmava aquele formigueiro... qu’ele
co’o dedito até parecia querer
furar a orelha!
-
Ó Ti Amélia, o café arrefeceu?!...
-
Deite mais uma goladinha que, bem quente, amaina a tosse. Obrigada, senhora. O
mel do Céu deve ser como esta cevadinha!
E,
logo, continuava...
-
Eram assim: « - Ó Mãe, foi ele que meteu a cabeça na regadeira p’ra
lavar o ranho e a água entrou p’ra
orelha...»; « - Nã foi nada, mentiosa!»;
« - Foi, foi. Tu até choraste!»; « - Tu é que choias,
ê cá sou um home...».
Hoje tudo dá p’ra rir... mas
nesse tempo...
Vida
de pobre, senhora! Tanta vez trabalho mendigado: « - Precisa de alguma
coisa qu’ê possa encarreirar?».
« - Ah! Até nã... mas já que te
aprestas... sempre levas algum». E a gente a saber qu’até
precisavam de uma demão!
O
mê mais velho fazia diferença d’anos
dos demais. Entrementes foram três anjos p’ro
Céu. Acando ele começou a dezer
que queria ir a salte p’ra
França, tinha 15 anos e a 3ª classe feita ós
nove. « - És muito novo, filho...». « - Nã
sou nã senhor e, s’a
sorte bulir, vomecê fica com menos
uma boca...». Doía ouvir aquilo...
Antão
ê
enterrava a cara nas mãos e apagava o tição do lume co’as
lágrimas. Mas, mais pr’a adiante,
quando ele inda teimava mais, ê
bem sabia, agora, o mais que o levava a abalar... Era a vergonha...
Aqui,
a Ti Amélia fez silêncio. E prolongou-o numa expressão de dor tão violenta
que também me
emudeceu. Respirou fundo. Viu-se que não queria que a voz lhe
saísse embargada quando recomeçou. Soergueu-se e atirou, num repente, como
se tivesse receio de eu lhe interromper a narrativa. (Ou de se calar ela?...).
-
Um dia arresolvi-me. Agarrei
coragem e larguei a caminho da freguesia. Bati à porta do Sr. Padre N..
Assomou a irmã dele, a menina Ana. « - Por favor diga ao Sr. Padre que
preciso de lhe falar.»; « - Ai Amélia, Amélia – disse ela. Entra Mulher,
qu’ê vou chamá-lo. Mano! Ó
Mano, vem atender. E que o Senhor te ilumine, pelo divino amor de Deus...».
Ah!... Quem teria dado c’a língua
nos dentes, pensei eu. E ele veio. « - Sr. Padre, tenho um segredo para lhe
contar.». « - Não precisas, Amélia, já o sei.» Ê
chorava. « - Não te desgastes, Mulher! Como deste tal passo, filha do
Senhor? Quantos meses?». « - Vai em três, Sr. Padre.»
E contei-lhe tudo.
Eu,
suspensa, era um registo vivo. A Ti Amélia continuava.
-
Fui ó pinhal do F. , ajuntar
agulhas p’ro curral do gado dele.
Ele assediou-me.
Mê
Tino quer ir a salte, Sr. Padre, e
o passador quer três notas de conto...
Ele
disse que mos
dava e contou-mos
debaixo dos olhos. Nã registi,
Sr. Padre. Era a salvação do mê
filho...
Rilhei
os dentes e disse p´ra mim: « Ah!
Cão danado! Mal da sorte se fico prenhe de uma vez!... E, acando
ele acabou, deitei a mão às notas que ele tinha prantado
na agulha seca e fugi, fugi direita ao engenho, que nã
tinha outro lado para onde fugir... Ele inda
chamou... que queria contar o dinheiro. Ó
fim, abalou a rosnar praguedo...
O
soar da caruma debaixo dos mês
pés,
a andar, soava ós mês
ouvidos com’a voz da consciência
a roer, a roer... e o vento à roda dos pinheiros, à roda, à roda... e a
minha cabeça à roda. « - Nã
digas mais Amélia.». Digo, sim, Sr. Padre. Dei uma enxadada na terra, que me
rompeu o coração de remorso! Lembrei-me de Judas...
Agora
as palavras da Ti Amélia eram ásperas e saiam em catadupa, meio
entarameladas pela emoção.
-
Sim, de Judas, Sr. Padre. Ele traiu o Senhor e eu a minha honra por um punhado
de notas...
Embrulhei-as
todas num molho de agulhas, atei-as com ráfia, do cinto da saia, a um adobe
grande e lancei tudo no fundo do poço.
Vim
só contar ó Sr. Padre, qu’ê
sei que nã tenho perdão.
Neste
momento, esta mulher arresolvida
silenciou e chorou. Mas logo limpou os olhos à dobra do lençol.
Eu
nunca tinha ouvido história assim!
Perguntava-me
por que merecimento me era dado ficar senhora de tal milagre!
Milagre
que continuava.
-
« - Amélia! - disse o Sr. Padre – Tu nã
tens Fé? Jesus perdoou à mulher de má vida... e tu nã
és dessas. Ele lê os corações, Amélia. Deus já te perdoou. Eu te absolvo, em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo. Vai em
paz, nã
tornes a pecar.».
Ah!
senhora professora, ê nã era
digna de beijar a mão dum home com
o poder daquela palavra... Pus os joelhos no soalho e, antes que ele se
desviasse, beijei-lhe a batina.
Nã
torno, nã senhor. E nã
tornei.
O
silêncio abateu-se no quartito.
-
Fui para lá de alma suja e mãos vazias. – e mostrava as mãos magras e
encarquilhadas – e voltei de alma limpa e uma cesta à cabeça, cheia de
massa, açúcar, arroz, farinha, azeite e sete pratos fundos a luzir de novos!
Um carrêgo de ajoujar!
De
caminho para casa rezei o terço e a ladainha.
Mês
filhos esperavam à porta “esganados” de fome! Arregalaram os olhos p´ra
cesta... Foram-se deitar com a barriga farta.
Foi
p´ra isto que o Senhor chamou os
Doze. Ó serão rezei a penitência e dei graças.
Afundei-me
nas mantas. O menino mexia muito... « - Tá
paradinho, filho, que por qui está
muito frio.» Ê falava muito com
ele!... – e esboçava um sorriso, entre tímido e feliz, e continuava -
Mas
a “trovoada” inda nã
tinha passado. Nosso Senhor, no seu divino entender, lá achou que a penitência
tinha sido pouca. « - À Amélia,
tu nã correste
meios? E agora, aguenta! Como queres tu mais um em cima de cinco? Como o
queres criar criatura?»; « - Com fé em Deus mai’la
caridade de quem a quiser fazer».
-
E elas, Ti Amélia? - perguntei eu.
-
Calavam-se. Ah! Era gente rica, estava a mexer-lhes nos bolsos! É fácil
passar o camelo... Mas era gente que nã
faltava à missa, nã senhor...
Olhe
Fulana! – e dizia o nome – nunca mais deixou as filhas andar c’as
minhas, nim no trabalho.
Da
casa de Sicrano, nunca mais recebi uma jorna.
O
Ti Beltrano arengava que tinha roças lá p’ro
Mato Velho, longe – a senhora sabe – e tamém
sabe porque é que ele queria que eu fosse.
Cães
danados. Só p’ra fazer pouco...
Só p’ra rebaixar...
Deus
lhes perdoe, que foram todos adiante de mim a dar contas... Que a terra lhes
seja leve.
Às
vezes matuto: de todos os seres viventes que Deus criou, só o home
parece um bicho. E foi aquele a quem Deus deu a inteligência e o dom do
arrependimento... P’ra nada. Só
guerras!...
*
Olhei
o relógio. Era cedo para fazer o jantar. Sentia na Ti Amélia o desejo de
continuar o seu “remance” e a
mim prendia-me a sua companhia e o encanto da sua narrativa.
Até
ajudei a continuar.
-
E o menino nasceu pelo Natal, não foi, Ti Amélia?
-
Nã senhor, foi no mês das
Vésperas.
Ê falei com o Sr. Padre no mês da
Páscoa, tinha passado o Marçagão. Veio o de Nossa senhora, o S. João, o S.
Tiago (pinta o bago), o da Praia, o das Colheitas, o Arrecada... no outro
nasceu ele e despois é que veio o
Natal.
-
Engraçado, Ti Amélia! Nunca tinha ouvido assim o nome dos meses.
-
É que as pessoas estudadas dizem nomes mais finos, mas os da minha igualha
encarreiram melhor assim.
E,
p’r’acabar, olhe: Primeiro,
Segundo. A senhora achou graça. Até me deu em rir. Mas ê
posso binar. – e ela em tom de cantilena – Primeiro, Segundo, Marçagão,
Páscoa, Nossa Senhora, S. João, S. Tiago, Praia, Colheitas, Arrecada, Vésperas
ou Santos e Natal.
-
Já sei, Ti Amélia: Primeiro. Segundo, Marçagão... e rimos com vontade.
-
Nã admira, a senhora sabe de
letras, treinou a mimória!
Olhe:
acando o mê
menino nasceu foi uma alegria nas minhas filhas. Era rapaz, sabe, e elas eram
todas cachopas...
Só
o mê Tino nã
rasgou a palavra, nã disse o que santia...
Olhou calado, sorriu p´ra mim,
assim como a dar-me forças, mas inzistia
sempre no salte p’ra
França.
Passados
três dias foi a alegria do batizo.
O
mundo amainou as bocas e o menino trouxe-me alento.
No
Natal passou aqui a menina Ana e trouxe confeitos e gludices,
mais pano da tenda do Ti João. Fiz uma blúsia
à minha São e uma saia, da minha velha. Virei-a do avesso e ficou nova! Tudo
cosidinho à mão com a linha da saia desmanchada e uma agulha qu’ali
a Ti Zélia, que Deus tem, me emprestou.
O
Sr. Padre tamém passou, a dar as
Aleluias. Sentou-se aqui no mê
banquito a descansar, comeu um pedaço de broa com um naquito de toucinho
frito e um golinho de vinho da picheira.
Deixou
em riba da arca uma saquita bem recheada... só notas!
Foram
p´ro mê
Tino ir a salte.
E,
a partir de antão, tudo começou a
luzir melhor.
Não
era sem tempo!
-
Co’as
línguas do mundo cansadas, foram aparecendo as ajudas. Na Igreja o Sr. Padre inzistia,
inzistia: « - Nã
julgueis p´ra nã
serdes julgados».
E
com a malta a crescer e a mocidade delas a “brilhar”
com’as varas das cepas... tudo
foi mudando.
O
pequenino cresceu e ficou um rapazão. De sol a sol, na terra ou no emprego, lá
ia quilómetros de bicicleta que ele comprou em segunda ou terceira mão, com
o cestito da merenda, p’ra ganhar
a vida. Depois foi a salte p’ra
América. Castigado do trabalho, levava calo, agarrou-se a tudo.
Acando
cá voltou no mês da Praia era um homezarrão.
Se nã fosse mê
filho nã o conhecia. Louro com’a
eu e a testa do magano do pai. Pegou na enxada e ajudava a regar.
O
Tino, por lá tinha casado. As outras tamém.
«
- Mãe, é só este verão que regou o milho. Vou comprar tubos e chuveiros.»
Pôs ali o telefone. « - É para falar consigo, quando me vem a saudade».
Montou a salita com melhor mesa e um soufá.
« - É p’ra mãe dormir a sesta,
sem ir p’ra cama.». Ia comprando
as tendas todas ós feirantes:
fato, roipas de casa, panelas... «
- Tudo p’ra mim, filho?». « -
Tudo p’rà mãe, sim senhor».
Já
nã dizia “vomecê”.
Era “mãe”. Trazia falas de gente de sapato de verniz!
Há
muito que acabou a penitência!... Enterra-se o que nã
presta, o estrume, e esponta espiga nova. Foi assim comigo.
Nã
me falta nada. Vou andando de pé. Faço os mês
arranjos e a minha comida. Ouço-os ó telefone...
fico consolada.
Comprou-me
televisão. Uso pouco mas gosto de ter. A reforma nã
é muita porque os remédios são alguns, mas com os 150 dólares que ele
manda todos os meses, vivo bem.
O
mê Tino e a minha São vieram para
cá viver. Vim crescer alguns
netos. Eles e os netos da segunda camada estão todos aqui no mê
coração... e, assim, c’umas
visitinhas como esta e uns desabafos, até remoço, minha senhora.
A
pieira atacou, revoltada com tanto esforço, enquanto os olhitos revelavam a
passagem da emoção, mas também da satisfação.
-
Obrigada, Ti Amélia. Hoje ensinou-me muita coisa. Vou fazer o “escorrido”
para a ceia e volto outro dia para irmos juntas à nossa “bica”.
-
Amanhã dou-lhe espinafres, que estão viçosos ali no aido.
-
Obrigada, Ti Amélia. Então, até amanhã, se Deus quiser.
- Obrigada ê, senhora. Deus
a acompanhe.
*
Que
mérito me foi dado para ouvir esta confissão... Não! Para ouvir a lição
desta Mulher?...
O
sossego da aldeia ainda tem destes espaços, mergulhados na poluição sonora
dos tempos de hoje. Mas está também dificultado parar, para as ouvir.
Para
os próximos, estaria a calhar a vinda de um continuador dos “Doze”, em
algum tempo do século XXI... que este já vai longe e fechado com eclipse!
Só
com silêncio se ouvirão outras lições... Outras “Tias Amélias”...
como esta a quem já «Deus deu ordes
ós Anjos», mas desde aquele dia,
também ficou aqui, até que eu perdurar.
Carvalheira,
11 do mês da Praia de 1999
Maria
Ezequiel