Maria Ezequiel
 

Gente grande em tempos de eclipse

 

 

Há dois dias que a não via passar na sua caminhada diária até à sede de freguesia, com o pretexto de beber a bica, de cevada, ao balcão do supermercado. E o pretexto, para este pretexto, era também sempre o mesmo: «para mexer os nervos e deixar enferrujar os engonços»

- Dizem que, na minha idade, é bom muita missa, pouco garfo e muito sapato!... – acrescentava.

            E, com esta filosofia, ia nos oitenta e oito, com uns bons centímetros a menos - « sei porquê, mas dantes chegava bem à parteleira dos copos...» - , nervos de aço e engonços lubrificados!

Sempre a conheci com passo enérgico, cabeça um pouco pendente e os olhos no chão. Mas quando os levantava eram vivos, num semblante amargurado. Seu riso fugidio morria sempre num sorriso entristecido, como se fora pecado rir ou gargalhar.

Parada não. «Há sempre terra a pedir golpes de enxada», dizia. No trabalho duro descarregava frustrações e desânimos, e temperava a fibra de mulher corajosa. Era aquilo que o povo chama uma mulher arresolvida.

Tinha um quê de doçura na voz que, tagarela como sou, junto dela emudecia e ficava à escuta. E muito já tinha ouvido...

Era a hora da bica de cevada. Apetecia-me conversa. Seria só atravessar a rua e ir ouvi-la. Liguei para o supermercado

- Está aí a Ti Amélia?

- Não. Já há bastantes dias que aqui não vem. A senhora não a tem visto? Só se está doente...

Ficou urgente sair de casa...

Fui encontrá-la, só «a descansar da fadiga dos anos!». Os lençóis e a colcha não destoavam da alvura das paredes. Um crucifixo pequenino  preso com um laço aos ferros da cama, um terço junto do candeeiro eléctrico na mesa de cabeceira mais, na parede, «o retrato dos mês filhos todos, assim como num molho de espigas...» eram os ornamentos do quartinho acanhado onde se respirava fé e muito amor.

- Ó minha senhora, traga daí um banco que o soufá da salita cabe aqui. Fica mais mal assentada mas é o que se pode arranjar.

E continuou, numa voz doce sem pieguice, uma doçura que vinha de dentro, natural, desafectada, num falar que era um desabafo sem lamúrias.

- Olhe que o dia está mau para a minha pieira. Este noveiro nã deixa passar o ar. Há dois dias que o sol anda por lá. Se ele ó menos espreitasse envergonhado... mas quê?! Até chega aqui a aragem do mar!...

- E se eu fosse pôr água ali no saco? Aquece-se num instante.

- Ficava-lhe agardecida, sim senhora... – e depois de um sorriso – às vezes parece que se me arrepiam os ossos, mas ê penso que os ossos sã tã duros que se devem arripiar, antão nã é?... A carne está bem e a pele , olhe, fica assim... mirrada e mole!... Os anos muitos, o que hei-de esperar?... Esperar que Deus dê ordes ós anjos. Mas, se escapo destas Vésperas de Inverno inda volto, no tempo seco, a mais uma viage. Ai vou, vou, se Deus mandar os anjos...

E depois de curta pausa, num curto espanto:

- Aquilo é que são Terras! Mas olhe que vi lá mais miséria q’aqui!... Conforme é grande nas casas, nas ruas, naquela barrage... das... cataratas ( sei porque lhe prantaram tal nome) assim tamém a miséria é grande. Qu’ele até há miséria que se vê!... Essa é que é essa, sim senhor. terras de luxo! Mas está tudo na mão dos graúdos... Fora estes, os que vivem bem ainda são os que trabalham para eles. Quem se agarra tem sempre onde matar o corpo e compensa. Dá p’rós gastos do uso, p’ra um poucachino de advertimento e para aforrar e fazer pé de meia, olé!

E, ligando os pensamentos:

- Ê sempre ensinei os s filhos: - Cabeça afinada, vontade de ser mais e fé em Deus... o resto dá-no a “máquina” dentro do peito – dá sangue e sentimento... E graças ao Altíssimo eles têm cumprido e vão bem no desenrasque.

            - E uma cevadita, Ti Amélia? Sobrou água.

- Vem a calhar p’ra fazer cuspo. P’ra mim com açucre, mas p’rá senhora...

- Bebo sem ele, Ti Amélia, não me importo...

- Ai importa, importa, o que tem é que ser. O que tem que ser impõe muito respeito, dizia a minha mãe! Mas antão..., a senhora tamém tem que amargar alguma coisa na vida!!!... Ah! faça caso, qu’ê estou a mangar!

- Eu sei Ti Amélia. E, pelo que me conta assim tão bem disposta, gostou mesmo da viagem. Eu bem digo... Até os olhos se lhe riem. Isso é que foi matar saudades!

- Foi um mês de regalo! Mas as Américas ficam muito longe. Olhe, senhora! A gente aqui diz: Foi p’ra América. Mas está bem, porque elas três. A que fica p’ra a banda do norte, a que fica p’ra banda do sul e uma assim no meio delgadinha, a pegar às outras. filho mostrou-me no mapa. Riscou uma cruz onde a gente estava: « - Esta toda é a América do Norte». Depois apontou as outras duas. Ê perguntei: « - Ó filho e onde está Portugal?» Ele disse: « - Aqui», e pôs lá o lápis. Dá-me os óculos, filho. pecanino ó pé do mundo todo! Parece um codrado, mas mais cumprido... Atão ê vim de avião dali pr’aqui?! E isto tudo azul é céu? Ele disse: « - È água, mãe».

A Ti Amélia, aqui, mediu as grandezas:

- Ih! Como Deus é grande, senhora professora! Ele fez tanta água e a gente a ralhar com a seca! Ele afasta a chuva p´ra nos castigar, que bem merecemos...

- Olhe lá, as suas filhas estão todas na mesma cidade?

- senhora, algumas estão longe mas fui a casa delas todas e despois inda s’ajuntaram filhos e netos. Éramos seis, mais genros e noras, doze; mais dezasseis netos e seis bisnetos, trinta e quatro, se erro o contado; e sobrinhos  e filhos, sei já  cantos... foi uma festa muito bonita! Muitas luzes, muito comer e bebidas de todas as raças, um bolo assim que parecia um prédio, mais música de conjunto, mais ranchos com rapaziada de lá, americanos, filhos de portugueses e todos me beijavam e me davam passou-bens. Olhe, senhora, a Ti Amélia rainha da festa, salvo seja, já se vê, que havia lá gente muito importante. Uns patrões dos mês filhos, gente de ... de ..., como é que eles desseram ? ..., de vulto. Parece que foi assim. A senhora compreende o que eu quero dizer. Graças a Deus todos vivem bem. Até me consolei de tal ver! 

A Ti Amélia puxou pelo fôlego, franziu a testa, suspirou, amornou a voz e afrouxou a cadência.

 - Dei por bem empregue tanta água que me correu dos olhos para os criar; tanta revolta das faltas que passei, a pontes de tirar broa à barriga, p’ra eles terem que trincar! Tantas vezes a regar, e na cesta, ali ao lado, o mais novo a chorar baba e ranho. O malvado só se calava c’a rolha de farrapo molhada no açucre! No açucre?!... nas colheritas que me davam a troco de mais uma hora de trabalho a partir lenha... Machado pesado, lenha dura, minha senhora... para uma viúva com cinco filhos... E noites? Noites sem fim... a untar-lhes a barriga com azeite quentinho para aliviar dores; a espremer leite do seio p’ro ouvido do Tino. Era só matéria a escorrer p’ra fora e, a senhora sabe, que o leite da mãe, assim morno, acalmava aquele formigueiro... qu’ele co’o dedito até parecia querer furar a orelha!

- Ó Ti Amélia, o café arrefeceu?!...

- Deite mais uma goladinha que, bem quente, amaina a tosse. Obrigada, senhora. O mel do Céu deve ser como esta cevadinha!

E, logo, continuava...

- Eram assim: « - Ó Mãe, foi ele que meteu a cabeça na regadeira p’ra lavar o ranho e a água entrou p’ra orelha...»; « - foi nada, mentiosa!»; « - Foi, foi. Tu até choraste!»; « - Tu é que choias, ê cá sou um home...». Hoje tudo dá p’ra rir... mas nesse tempo...

Vida de pobre, senhora! Tanta vez trabalho mendigado: « - Precisa de alguma coisa qu’ê possa encarreirar?». « - Ah! Até ... mas já que te aprestas... sempre levas algum». E a gente a saber qu’até precisavam de uma demão!

O mais velho fazia diferença d’anos dos demais. Entrementes foram três anjos p’ro Céu. Acando ele começou a dezer que queria ir a salte p’ra França, tinha 15 anos e a 3ª classe feita ós nove. « - És muito novo, filho...». « - sou senhor e, s’a sorte bulir, vomecê fica com menos uma boca...». Doía ouvir aquilo...

Antão ê enterrava a cara nas mãos e apagava o tição do lume co’as lágrimas. Mas, mais pr’a adiante, quando ele inda teimava mais, ê bem sabia, agora, o mais que o levava a abalar... Era a vergonha... 

Aqui, a Ti Amélia fez silêncio. E prolongou-o numa expressão de dor tão violenta que também me emudeceu. Respirou fundo. Viu-se que não queria que a voz lhe saísse embargada quando recomeçou. Soergueu-se e atirou, num repente, como se tivesse receio de eu lhe interromper a narrativa. (Ou de se calar ela?...).

 - Um dia arresolvi-me. Agarrei coragem e larguei a caminho da freguesia. Bati à porta do Sr. Padre N.. Assomou a irmã dele, a menina Ana. « - Por favor diga ao Sr. Padre que preciso de lhe falar.»; « - Ai Amélia, Amélia – disse ela. Entra Mulher, qu’ê vou chamá-lo. Mano! Ó Mano, vem atender. E que o Senhor te ilumine, pelo divino amor de Deus...». Ah!... Quem teria dado c’a língua nos dentes, pensei eu. E ele veio. « - Sr. Padre, tenho um segredo para lhe contar.». « - Não precisas, Amélia, já o sei.» Ê chorava. « - Não te desgastes, Mulher! Como deste tal passo, filha do Senhor? Quantos meses?». « - Vai em três, Sr. Padre.» E contei-lhe tudo.

 

Eu, suspensa, era um registo vivo. A Ti Amélia continuava.

 

- Fui ó pinhal do F. , ajuntar agulhas p’ro curral do gado dele. Ele assediou-me.

Tino quer ir a salte, Sr. Padre, e o passador quer três notas de conto...

Ele disse que mos dava e contou-mos debaixo dos olhos. registi, Sr. Padre. Era a salvação do filho...

Rilhei os dentes e disse p´ra mim: « Ah! Cão danado! Mal da sorte se fico prenhe de uma vez!... E, acando ele acabou, deitei a mão às notas que ele tinha prantado na agulha seca e fugi, fugi direita ao engenho, que tinha outro lado para onde fugir... Ele inda chamou... que queria contar o dinheiro. Ó fim, abalou a rosnar praguedo...

O soar da caruma debaixo dos s pés, a andar, soava ós s ouvidos com’a voz da consciência a roer, a roer... e o vento à roda dos pinheiros, à roda, à roda... e a minha cabeça à roda. « - digas mais Amélia.». Digo, sim, Sr. Padre. Dei uma enxadada na terra, que me rompeu o coração de remorso! Lembrei-me de Judas...

 

Agora as palavras da Ti Amélia eram ásperas e saiam em catadupa, meio entarameladas pela emoção.

 

- Sim, de Judas, Sr. Padre. Ele traiu o Senhor e eu a minha honra por um punhado de notas...

Embrulhei-as todas num molho de agulhas, atei-as com ráfia, do cinto da saia, a um adobe grande e lancei tudo no fundo do poço.

Vim só contar ó Sr. Padre, qu’ê sei que tenho perdão.

 

Neste momento, esta mulher arresolvida silenciou e chorou. Mas logo limpou os olhos à dobra do lençol.

 

Eu nunca tinha ouvido história assim!

Perguntava-me por que merecimento me era dado ficar senhora de tal milagre!

Milagre que continuava.

 

- « - Amélia! - disse o Sr. Padre – Tu tens Fé? Jesus perdoou à mulher de má vida... e tu és dessas. Ele lê os corações, Amélia. Deus já te perdoou. Eu te absolvo, em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo. Vai em paz, tornes a pecar.».

Ah! senhora professora, ê nã era digna de beijar a mão dum home com o poder daquela palavra... Pus os joelhos no soalho e, antes que ele se desviasse, beijei-lhe a batina.

torno, senhor. E tornei.

 

O silêncio abateu-se no quartito.

 

- Fui para lá de alma suja e mãos vazias. – e mostrava as mãos magras e encarquilhadas – e voltei de alma limpa e uma cesta à cabeça, cheia de massa, açúcar, arroz, farinha, azeite e sete pratos fundos a luzir de novos! Um carrêgo de ajoujar!

De caminho para casa rezei o terço e a ladainha.

s filhos esperavam à porta “esganados” de fome! Arregalaram os olhos p´ra cesta... Foram-se deitar com a barriga farta.

Foi p´ra isto que o Senhor chamou os Doze. Ó serão rezei a penitência e dei graças.

Afundei-me nas mantas. O menino mexia muito... « - paradinho, filho, que por qui está muito frio.» Ê falava muito com ele!... – e esboçava um sorriso, entre tímido e feliz, e continuava - 

Mas a “trovoada” inda tinha passado. Nosso Senhor, no seu divino entender, lá achou que a penitência tinha sido pouca. « - À Amélia, tu correste meios? E agora, aguenta! Como queres tu mais um em cima de cinco? Como o queres criar criatura?»; « - Com fé em Deus mai’la caridade de quem a quiser fazer».

 

- E elas, Ti Amélia? - perguntei eu.

 

- Calavam-se. Ah! Era gente rica, estava a mexer-lhes nos bolsos! É fácil passar o camelo... Mas era gente que faltava à missa, senhor...

Olhe Fulana! – e dizia o nome – nunca mais deixou as filhas andar c’as minhas, nim no trabalho.

Da casa de Sicrano, nunca mais recebi uma jorna.

O Ti Beltrano arengava que tinha roças lá p’ro Mato Velho, longe – a senhora sabe – e tamém sabe porque é que ele queria que eu fosse.

Cães danados. Só p’ra fazer pouco... Só p’ra rebaixar...

Deus lhes perdoe, que foram todos adiante de mim a dar contas... Que a terra lhes seja leve.

Às vezes matuto: de todos os seres viventes que Deus criou, só o home parece um bicho. E foi aquele a quem Deus deu a inteligência e o dom do arrependimento... P’ra nada. Só guerras!...

 

*

 

Olhei o relógio. Era cedo para fazer o jantar. Sentia na Ti Amélia o desejo de continuar o seu “remance” e a mim prendia-me a sua companhia e o encanto da sua narrativa.

Até ajudei a continuar.

- E o menino nasceu pelo Natal, não foi, Ti Amélia?

 

- senhor, foi no mês das Vésperas. Ê falei com o Sr. Padre no mês da Páscoa, tinha passado o Marçagão. Veio o de Nossa senhora, o S. João, o S. Tiago (pinta o bago), o da Praia, o das Colheitas, o Arrecada... no outro nasceu ele e despois é que veio o Natal.

- Engraçado, Ti Amélia! Nunca tinha ouvido assim o nome dos meses.

- É que as pessoas estudadas dizem nomes mais finos, mas os da minha igualha encarreiram melhor assim.

E, p’r’acabar, olhe: Primeiro, Segundo. A senhora achou graça. Até me deu em rir. Mas ê posso binar. – e ela em tom de cantilena – Primeiro, Segundo, Marçagão, Páscoa, Nossa Senhora, S. João, S. Tiago, Praia, Colheitas, Arrecada, Vésperas ou Santos e Natal.

- Já sei, Ti Amélia: Primeiro. Segundo, Marçagão... e rimos com vontade.

- admira, a senhora sabe de letras, treinou a mimória!

Olhe: acando o menino nasceu foi uma alegria nas minhas filhas. Era rapaz, sabe, e elas eram todas cachopas...

Só o Tino rasgou a palavra, disse o que santia... Olhou calado, sorriu p´ra mim, assim como a dar-me forças, mas inzistia sempre no salte p’ra França.

Passados três dias foi a alegria do batizo.

O mundo amainou as bocas e o menino trouxe-me alento.

No Natal passou aqui a menina Ana e trouxe confeitos e gludices, mais pano da tenda do Ti João. Fiz uma blúsia à minha São e uma saia, da minha velha. Virei-a do avesso e ficou nova! Tudo cosidinho à mão com a linha da saia desmanchada e uma agulha qu’ali a Ti Zélia, que Deus tem, me emprestou.

O Sr. Padre tamém passou, a dar as Aleluias. Sentou-se aqui no banquito a descansar, comeu um pedaço de broa com um naquito de toucinho frito e um golinho de vinho da picheira.

Deixou em riba da arca uma saquita bem recheada... só notas!

Foram p´ro Tino ir a salte.

E, a partir de antão, tudo começou a luzir melhor.

 

Não era sem tempo!

 

- Co’as línguas do mundo cansadas, foram aparecendo as ajudas. Na Igreja o Sr. Padre inzistia, inzistia: « - julgueis p´ra serdes julgados».

E com a malta a crescer e a mocidade delas a “brilharcom’as varas das cepas... tudo foi mudando.

O pequenino cresceu e ficou um rapazão. De sol a sol, na terra ou no emprego, lá ia quilómetros de bicicleta que ele comprou em segunda ou terceira mão, com o cestito da merenda, p’ra ganhar a vida. Depois foi a salte p’ra América. Castigado do trabalho, levava calo, agarrou-se a tudo.

Acando cá voltou no mês da Praia era um homezarrão. Se fosse filho o conhecia. Louro com’a eu e a testa do magano do pai. Pegou na enxada e ajudava a regar.

O Tino, por lá tinha casado. As outras tamém.

« - Mãe, é só este verão que regou o milho. Vou comprar tubos e chuveiros.» Pôs ali o telefone. « - É para falar consigo, quando me vem a saudade». Montou a salita com melhor mesa e um soufá. « - É p’ra mãe dormir a sesta, sem ir p’ra cama.». Ia comprando as tendas todas ós feirantes: fato, roipas de casa, panelas... « - Tudo p’ra mim, filho?». « - Tudo p’rà mãe, sim senhor».

dizia “vomecê”. Era “mãe”. Trazia falas de gente de sapato de verniz!

Há muito que acabou a penitência!... Enterra-se o que presta, o estrume, e esponta espiga nova. Foi assim comigo.

me falta nada. Vou andando de pé. Faço os s arranjos e a minha comida. Ouço-os ó telefone... fico consolada.

Comprou-me televisão. Uso pouco mas gosto de ter. A reforma é muita porque os remédios são alguns, mas com os 150 dólares que ele manda todos os meses, vivo bem.

O Tino e a minha São vieram para cá viver. Vim crescer alguns netos. Eles e os netos da segunda camada estão todos aqui no coração... e, assim, c’umas visitinhas como esta e uns desabafos, até remoço, minha senhora.

 

A pieira atacou, revoltada com tanto esforço, enquanto os olhitos revelavam a passagem da emoção, mas também da satisfação.

 

- Obrigada, Ti Amélia. Hoje ensinou-me muita coisa. Vou fazer o “escorrido” para a ceia e volto outro dia para irmos juntas à nossa “bica”.

 

- Amanhã dou-lhe espinafres, que estão viçosos ali no aido.

- Obrigada, Ti Amélia. Então, até amanhã, se Deus quiser.

            - Obrigada ê, senhora. Deus a acompanhe.

 

*

Que mérito me foi dado para ouvir esta confissão... Não! Para ouvir a lição desta Mulher?...

 

O sossego da aldeia ainda tem destes espaços, mergulhados na poluição sonora dos tempos de hoje. Mas está também dificultado parar, para as ouvir.

Para os próximos, estaria a calhar a vinda de um continuador dos “Doze”, em algum tempo do século XXI... que este já vai longe e fechado com eclipse!

Só com silêncio se ouvirão outras lições... Outras “Tias Amélias”... como esta a quem já «Deus deu ordes ós Anjos», mas desde aquele dia, também ficou aqui, até que eu perdurar.

  
Carvalheira, 11 do mês da Praia de 1999
Maria Ezequiel 

 

 
Copyright 1999