Teresa
sentia uma profunda solidão nesse Quarto Domingo
do Advento.
Mais
forte haveria de ser na noite e dia do Natal!
Nunca lhe tinha acontecido!
Enrolada
numa mantinha, atirara-se para o fundo do sofá.
Por companhia a lareira. Desatenta, fitava-a
crepitando no silêncio da sala. Seu pensamento
voava longe... longe... no espaço e no tempo... e
seu coração pousara na contemplação do Presépio
de menina, em casa de seus pais... lá longe...
onde o sol esquentava e se abafava de humidade...
Com
que ansiedade
se esperava o anúncio do missionário: «
Hoje é o 1º Domingo do Advento». A pequenada
rejubilava! Desdobravam-se os papelões que fariam
a estrutura da gruta. Apesar de colocada sempre no
mesmo sítio, não diminuía o valor da ocorrência.
Só o formato variava conforme o gosto de quem a
moldava e ela, Teresa, a quinta
filha do casal, teria de crescer esperando
lhe dessem esse privilégio.
Ao
longo do Advento, as figuras iam tomando posições:
no rio de folha de alumínio, debruçava-se a
lavadeira; pedaços de espelho serviam de lago a
patos e gansos; muito ao longe, aparecia na curva
do caminho Nossa Senhora - já cansada, dizia a Avó
- montada no burrinho conduzido à arreata por S.
José; bem no cimo de um outeiro, o castelo era a
residência do mau rei Herodes que devia estar à
espreita por alguma fresta! Pastores e ovelhas
espalhavam-se pela planície. Numa feira na Metrópole,
a mãe comprara os indispensáveis coloridos Reis
Magos, mas estes só se integrariam no ambiente
entre o Ano Bom e os Reis.
Conforme
os dias passavam, o burrinho e os seus
acompanhantes iam ficando mais perto de Belém. É
que, todos os dias a criada, a mamana
Babá, deslocava as figuras e fazia os rebanhos
mudar de pastagens!... Belém, simbolizada por
casinhas de papel feitas pelo mano mais velho, via
chegar a Sagrada Família, batendo de porta em
porta, pedindo a tão negada pousada. Repousariam
por fim, na humilde gruta, esperando o Grande
Acontecimento.
Na
Noite Santa, muitos sapatos velavam o Presépio
aguardando o Menino Jesus na manjedoura e a
surpresa dos presentes. Antes, porém, tinham-se
servido as batatas, o bacalhau e as couves,
indispensáveis aos Avós que sempre recordavam o
delicioso sabor do azeite da sua Beira Alta longínqua,
perdida. Mas Natal era em todo o lado...
E
todos acorriam fervorosos à Missa do Galo.
Subitamente
o vento açoitou os vidros das janelas, ateando o
frio que lá fora fazia apertar casacos, levantar
golas e soprar nos dedos...
Teresa
aconchegou-se e deixou seguir o pensamento...
Eram
quatro semanas de espera e esperança.
Na
catequese e em casa tinham-lhe contado toda a história
que há milénios se desenrolara em terras da
Palestina. Os manos, conhecedores de muito ouvir,
intervinham nas sessões de esclarecimento onde as
perguntas podiam ser pertinentes mas embaraçosas!
Porque viajavam de burro em vez de carro?! Porque
não fizeram enxoval ao Menino?! Os camelos não
andariam mais depressa que os burros?! E porque é
que a polícia não prendeu logo o Herodes??!!!...
As dúvidas iam sendo esclarecidas, as ideias
colocadas no seu lugar, os ensinamentos
alimentando as raízes que fariam a planta
frutificar.
Enfim,
quando as figuras regressavam ao sono da espera
pelo próximo Natal, um vazio ficava... mas cheio
de curiosidades... que também exigiam explicações
a que, com a sua sábia simplicidade, mamana
Babá também ajudava:
-Onde
está agora o Jesus? – teria perguntado Teresa.
-Tá
aqui com minina.
-Eu
não vejo nada!...
-Tu
não vê. Tu ouve. Minina
fazê mal, Ele dizê e minina
ficá triste. Minina fazê
coisa boa,
Ele dizê e minina ficá
contente. Naceu pa ficá
no coração di todo o
genti di
Mundo...
-Quem
te ensinou mamana
Babá?
-Tua
Vovó e meu coração.
-Foi
o teu coração que te ensinou a ler assim...
bocadinho... bocadinho?
-Não
sinhô.
Foi tua Vovó.
-Para
quê?
-Pa
lê
livro di
Jisu.
-Conta,
conta a história do passarinho, conta...
-Vá
intão. Minina Tirizinha
deitá cabicinha na mofada
e fichá olhinho pa pensá
milhó...
Andava
um dia
Em
piquinino
Nos
arredores
De
Nazaré,
Em
companhia
Di
São José,
O
Deus-Minino,
O
Bom-Jisu
Eis,
sinão cando
Vê
num silvado
Andar
piando
Arripiado
E
esvoaçando
Um
rouxinol,
Que
uma sirpenti
A
mão da menina apertava a da Babá, não fosse a
cobra aparecer!
Di
olhar di
luz
Risplandicente
Como
a do sol,
E
pinitranti
Como
diamanti,
Tinha
atraído,
Tinha
encantado.
Jisu
com pena
(doído)
Di
disgraçado
Di
passarinho,
Sai
do caminho,
Corri
aprissado,
Quebra
o encanto;
Fogi
a sirpenti;
E
di ripenti
O
pobrizinho,
Salvo
e contenti,
Rompi
num canto
Tão
riquibrado
Ou
antis pranto
Tão
soluçado,
Tão
ripassado
Di
gratidão,
Duma
aligria,
Uma
ixpansão,
Uma
veemência,
Uma
ixpressão,
Uma
cadência,
Qui
comovia
O
coração!
Jisu
caminha
No
seu passeio;
E
a avizinha
Continuando
No
seu gorgeio,
Enquanto
O via:
De
vez em cando
Lá
lhi
passava
À
dianteira;
E,
mal pousava,
Não
afrouxava
Nim
ripitia;
Qui
ridobrava
Di
milodia!
Assim
foi indo
E
O foi siguindo.
De
tal maneira
Qui,
noite e dia,
Numa
palmeira
Qui
havia perto
Dondi
morava
Nosso
Sinhô
Em
piquinino,
(Era
já certo)
Ela
lá estava
Terezinha
entreabria os olhinhos... e mamana
Babá também «lá estava» de mãos erguidas,
olhos grandes, bem abertos, olhando o tecto!...
A
pobri
ave
Cantando
o hino
Terno
e suave
Do
seu amô
Ó
Salvadô!
(*)
Era
só fechar a fisguinha das pálpebras e já nem
via a mamana
Babá sair...
Teresa
sorria agora às recordações da sua infância! Lá
fora, a chuva continuava teimosa!
O
que fariam os filhos e as netas aquela hora?...
Enviuvara. Vira os filhos partir. Cada um para
onde escolheu... ou Deus determinou?...
Às
suas primeiras passaditas desengonçadas, em
tentativas de equilíbrio, levava-os à Sª. das
Graças e rezava: « Encaminha-os...».
E
eles lá foram: Maria era missionária na África
negra; regressou às origens... Simão Pedro,
algures na Amazónia, defendia os direitos dos índios.
Filipe, numa paróquia em França, celebraria a
Missa da Meia Noite, em apoteose com os emigrantes.
Ana, no Canadá, passaria a quadra com o marido,
duas filhas e o bebé por nascer. Já tinha nome:
José Maria porque se esperava chegasse dentro de
duas semanas...
A
lareira fraquejou. Foi preciso mexer a cinza e pôr
lenha. Aconchegou-se na manta. Quem estaria mais
teimosa, a chuva ou a sua memória?!... A memória
que voltava!
Por
volta dos dezassete anos, imaginem, saltou-lhe uma
pergunta achada descabida pela mãe, mas que teve
resposta até surpreendente:
-Mamana
Babá, tu fazes o Presépio em tua casa?
-Sim,
minina. Sempri, sempri...
E
perante a surpresa de todos convidou a irem ver o
seu Presépio «...si
patrão e sinhora dar
licença...»
Claro
que deram. Lá foram os cinco até ao bairro negro
contendo a corrida e a curiosidade...
Pararam
a uma porta.
-Aqui,
minino. Aí é quarto di dormi...
-E
nesta porta?- perguntaram.
-É
pa pôr coisa di
cozinhá.
Ficaram
então a saber que eram três as cubatas
pertencentes à família. Entraram na indicada. O
chão estava todo forrado com esteiras e nas
paredes capulanas vistosas. Chamaram-lhe a sala de
visitas!
Foi
preciso habituar os olhos à pouca claridade para
reconhecer um Presépio encantador e original!...
De cada boca saiu uma exclamação! Se fosse possível,
trocariam já o seu pelo da mamana
Babá!
A
gruta, construída com paus de lenha seca, mais
parecia um ninho de aves revestido a capim que
transbordava ao redor. Lá estavam nesse ninho de
amor, tão singelo, desataviado e ingénuo, as três
figuras principais. No lugar do burro e da
vaquinha uma cadelinha com dois filhotes! Um pedaço
de lata transformara-se em lago! Aí nadava o
crocodilo de mandíbulas assanhadas! Mulheres
enchiam latas e lavavam os filhos no caudal de um
rio de farinha! Pela planície, leões e gazelas,
búfalos e cobras, elefantes e leopardos
descansavam à sombra da mata! Um grupo de cubatas
a formar Belém...À porta da sua casa de madeira
(que luxo!) rei Herodes vigiava!...
Tudo,
tudo esculpido em pau preto... ou madeira pintada?...
-Quem
fez tudo isto, mamana
Babá?!...
-Meu
família, minino.
-Dizia sorrindo verdadeiramente feliz.
-E
também houve presentes? - pergunta descabida
diria a mãe!...
-Sim,
minino. Ganchinho di
cabelo; missanga e conta di
colar e pulseira; pena de ave pa
chapéu di
papai ir
ó batuque e um lenço novo, a que a mamana Babá dava forma elegante à volta da cabeça!...
Mas
havia mais surpresas...
De
um cestinho feito de folhas de palmeira, Babá fez
sair três figurinhas com as cabeças enfeitadas e
caixinhas nas mãos. Que eram os Reis Magos, era
evidente, mas um estava pintado de branco!!!...
-Estii doii
vem do
Oriente. Esti (explicou enquanto o depunha num barquito com duas velas de
pano) é Rei Mago di
Lisboa...
Ouviu-se
um coro de gargalhadas... E, quando todos, um dia,
retornaram com os pais, aquela fotografia, então
tirada, virou dúzias, às quais os amigos não
negavam alegres exclamações e elogios!
O
calor fez Teresa recuar o sofá. Mas as recordações
prosseguiam.
«
Vovô moreu e Vovó foi com eli...»,
como diria a Babá.
Os
anos foram passando entre calor e fortes chuvadas
ou lindos dias de sol, às vezes preguiçosos e
sonolentos. Corriam com lentidão, saborosos e
aromáticos como a fruta madura.
Mamana
Babá envelhecera. Ainda embalava carinhosa os
filhos e os sobrinhos da Teresa, cantando como
dantes:
Vem,
vem ó Jisu
Vem,
vem Salvadô
Dar
Tua Luz
Dar
Teu Amô
Vem,
vem ós minino
Dar
Fogo e crescê
Com
Esprito Santo
Pra
elii vivêê
Na
Paz di seuu diaa
Na
Paz di Sinhô
Na
Paz dii Homii
Na
Paz di Amô...
Mas
os Homi fizeram guerra!
Em
certa noite a «trovoada» estalou ao longe...Os
«relâmpagos» e «faíscas» cortaram o ar...O
medo apossou-se de todos. Entre desilusões,
indecisões e incertezas, encheu-se um contentor
que até nunca chegou ao destino...
Mamana
Babá a tudo assistia triste e chorosa. No momento
da partida precipitada, abraçou a todos comovidíssima.
Entregou a Teresa um embrulho de jornal atado com
um fio. Na pressa da fuga, só no avião foi
aberto e a comoção foi tão grande que a voz se
lhe embargou, regando de lágrimas as mãos e o
lenço...
Os
olhos de Teresa estavam marejados...
Um
estalido da lenha trouxe-a à realidade.
Desenvencilhou-se da manta e foi-se deitar.
Porém,
antes de adormecer, prometeu a si própria que,
apesar de estar só, iria fazer o Presépio como
nos anos anteriores, voltar a colocar amorosamente
nas palhinhas o Menino Jisu
negrinho, de fraldinha branca presa com um
alfinete, que retiraria da mesma folha de jornal
em que o recebera, embrulhado pela mamana
Babá ...
Ele
vem e não tem raça nem cor.
Ele
vem «de boa vontade»... para todos.
-«
Naceu pa
ficá no
coração di
todo o genti
di Mundo
...»
Natal 1999
(*)
João de Deus (Cartilha Maternal - 18ª edição, 1906
"Oferecido às Côrtes de 1888, em signal de reconhecimento"
(ortografia modificada)