Maria Ezequiel

O Presépio

 

Teresa sentia uma profunda solidão nesse Quarto Domingo do Advento.

Mais forte haveria de ser na noite e dia do Natal! Nunca lhe tinha acontecido!

Enrolada numa mantinha, atirara-se para o fundo do sofá. Por companhia a lareira. Desatenta, fitava-a crepitando no silêncio da sala. Seu pensamento voava longe... longe... no espaço e no tempo... e seu coração pousara na contemplação do Presépio de menina, em casa de seus pais... lá longe... onde o sol esquentava e se abafava de humidade...

 

Com que ansiedade  se esperava o anúncio do missionário: « Hoje é o 1º Domingo do Advento». A pequenada rejubilava! Desdobravam-se os papelões que fariam a estrutura da gruta. Apesar de colocada sempre no mesmo sítio, não diminuía o valor da ocorrência. Só o formato variava conforme o gosto de quem a moldava e ela, Teresa, a quinta  filha do casal, teria de crescer esperando lhe dessem esse privilégio.

Ao longo do Advento, as figuras iam tomando posições: no rio de folha de alumínio, debruçava-se a lavadeira; pedaços de espelho serviam de lago a patos e gansos; muito ao longe, aparecia na curva do caminho Nossa Senhora - já cansada, dizia a Avó - montada no burrinho conduzido à arreata por S. José; bem no cimo de um outeiro, o castelo era a residência do mau rei Herodes que devia estar à espreita por alguma fresta! Pastores e ovelhas espalhavam-se pela planície. Numa feira na Metrópole, a mãe comprara os indispensáveis coloridos Reis Magos, mas estes só se integrariam no ambiente entre o Ano Bom e os Reis.

Conforme os dias passavam, o burrinho e os seus acompanhantes iam ficando mais perto de Belém. É que, todos os dias a criada, a mamana Babá, deslocava as figuras e fazia os rebanhos mudar de pastagens!... Belém, simbolizada por casinhas de papel feitas pelo mano mais velho, via chegar a Sagrada Família, batendo de porta em porta, pedindo a tão negada pousada. Repousariam por fim, na humilde gruta, esperando o Grande Acontecimento.

Na Noite Santa, muitos sapatos velavam o Presépio aguardando o Menino Jesus na manjedoura e a surpresa dos presentes. Antes, porém, tinham-se servido as batatas, o bacalhau e as couves, indispensáveis aos Avós que sempre recordavam o delicioso sabor do azeite da sua Beira Alta longínqua, perdida. Mas Natal era em todo o lado...

E todos acorriam fervorosos à Missa do Galo.

 

Subitamente o vento açoitou os vidros das janelas, ateando o frio que lá fora fazia apertar casacos, levantar golas e soprar nos dedos...

Teresa aconchegou-se e deixou seguir o pensamento...

 

Eram quatro semanas de espera e esperança.

Na catequese e em casa tinham-lhe contado toda a história que há milénios se desenrolara em terras da Palestina. Os manos, conhecedores de muito ouvir, intervinham nas sessões de esclarecimento onde as perguntas podiam ser pertinentes mas embaraçosas! Porque viajavam de burro em vez de carro?! Porque não fizeram enxoval ao Menino?! Os camelos não andariam mais depressa que os burros?! E porque é que a polícia não prendeu logo o Herodes??!!!... As dúvidas iam sendo esclarecidas, as ideias colocadas no seu lugar, os ensinamentos alimentando as raízes que fariam a planta frutificar.

Enfim, quando as figuras regressavam ao sono da espera pelo próximo Natal, um vazio ficava... mas cheio de curiosidades... que também exigiam explicações a que, com a sua sábia simplicidade, mamana Babá também ajudava:

-Onde está agora o Jesus? – teria perguntado Teresa.

- aqui com minina.

-Eu não vejo nada!...

-Tu não . Tu ouve. Minina fazê mal, Ele dizê e minina ficá triste. Minina fazê coisa boa, Ele dizê e minina ficá contente. Naceu pa ficá no coração di todo o genti di Mundo...

-Quem te ensinou mamana Babá?

-Tua Vovó e meu coração.

-Foi o teu coração que te ensinou a ler assim... bocadinho... bocadinho?

-Não sinhô. Foi tua Vovó.

-Para quê?

-Pa livro di Jisu.

-Conta, conta a história do passarinho, conta...

-intão. Minina Tirizinha deitá cabicinha na mofada e fichá olhinho pa pensá milhó...

 

Andava um dia

Em piquinino

Nos arredores

De Nazaré,

Em companhia

Di São José,

O Deus-Minino,

O Bom-Jisu

Eis, sinão cando

Vê num silvado

Andar piando

Arripiado

E esvoaçando

Um rouxinol,

Que uma sirpenti

 

A mão da menina apertava a da Babá, não fosse a cobra aparecer!

 

Di olhar di luz

Risplandicente

Como a do sol,

E pinitranti

Como diamanti,

Tinha atraído,

Tinha encantado.

Jisu com pena (doído)

Di disgraçado

Di passarinho,

Sai do caminho,

Corri aprissado,

Quebra o encanto;

Fogi a sirpenti;

E di ripenti

O pobrizinho,

Salvo e contenti,

Rompi num canto

Tão riquibrado

Ou antis pranto

Tão soluçado,

Tão ripassado

Di gratidão,

Duma aligria,

Uma ixpansão,

Uma veemência,

Uma ixpressão,

Uma cadência,

Qui comovia

O coração!

Jisu caminha

No seu passeio;

E a avizinha

Continuando

No seu gorgeio,

Enquanto O via:

De vez em cando

lhi passava

À dianteira;

E, mal pousava,

Não afrouxava

Nim ripitia;

Qui ridobrava

Di milodia!

Assim foi indo

E O foi siguindo.

De tal maneira

Qui, noite e dia,

Numa palmeira

Qui havia perto

Dondi morava

Nosso Sinhô

Em piquinino,

(Era já certo)

Ela lá estava

 

Terezinha entreabria os olhinhos... e mamana Babá também «lá estava» de mãos erguidas, olhos grandes, bem abertos, olhando o tecto!...

   

A pobri ave

Cantando o hino

Terno e suave  

Do seu amô

Ó Salvadô! (*)

 

Era só fechar a fisguinha das pálpebras e já nem via a mamana Babá sair...

 

Teresa sorria agora às recordações da sua infância! Lá fora, a chuva continuava teimosa!

O que fariam os filhos e as netas aquela hora?... Enviuvara. Vira os filhos partir. Cada um para onde escolheu... ou Deus determinou?...

Às suas primeiras passaditas desengonçadas, em tentativas de equilíbrio, levava-os à Sª. das Graças e rezava: « Encaminha-os...».

E eles lá foram: Maria era missionária na África negra; regressou às origens... Simão Pedro, algures na Amazónia, defendia os direitos dos índios. Filipe, numa paróquia em França, celebraria a Missa da Meia Noite, em apoteose com os emigrantes. Ana, no Canadá, passaria a quadra com o marido, duas filhas e o bebé por nascer. Já tinha nome: José Maria porque se esperava chegasse dentro de duas semanas...

 

A lareira fraquejou. Foi preciso mexer a cinza e pôr lenha. Aconchegou-se na manta. Quem estaria mais teimosa, a chuva ou a sua memória?!... A memória que voltava!  

 

Por volta dos dezassete anos, imaginem, saltou-lhe uma pergunta achada descabida pela mãe, mas que teve resposta até surpreendente:

-Mamana Babá, tu fazes o Presépio em tua casa?

 

-Sim, minina. Sempri, sempri...

E perante a surpresa de todos convidou a irem ver o seu Presépio «...si patrão e sinhora dar licença...»

Claro que deram. Lá foram os cinco até ao bairro negro contendo a corrida e a curiosidade...

Pararam a uma porta.

-Aqui, minino. Aí é quarto di dormi...

-E nesta porta?- perguntaram.

-É pa pôr coisa di cozinhá.

Ficaram então a saber que eram três as cubatas pertencentes à família. Entraram na indicada. O chão estava todo forrado com esteiras e nas paredes capulanas vistosas. Chamaram-lhe a sala de visitas!

Foi preciso habituar os olhos à pouca claridade para reconhecer um Presépio encantador e original!... De cada boca saiu uma exclamação! Se fosse possível, trocariam já o seu pelo da mamana Babá!

A gruta, construída com paus de lenha seca, mais parecia um ninho de aves revestido a capim que transbordava ao redor. Lá estavam nesse ninho de amor, tão singelo, desataviado e ingénuo, as três figuras principais. No lugar do burro e da vaquinha uma cadelinha com dois filhotes! Um pedaço de lata transformara-se em lago! Aí nadava o crocodilo de mandíbulas assanhadas! Mulheres enchiam latas e lavavam os filhos no caudal de um rio de farinha! Pela planície, leões e gazelas, búfalos e cobras, elefantes e leopardos descansavam à sombra da mata! Um grupo de cubatas a formar Belém...À porta da sua casa de madeira (que luxo!) rei Herodes vigiava!...

Tudo, tudo esculpido em pau preto... ou madeira pintada?...

-Quem fez tudo isto, mamana Babá?!...

-Meu família, minino. -Dizia sorrindo verdadeiramente feliz.

-E também houve presentes? - pergunta descabida diria a mãe!...

-Sim, minino. Ganchinho di cabelo; missanga e conta di colar e pulseira; pena de ave pa chapéu di papai ir ó batuque e um lenço novo, a que a mamana Babá dava forma elegante à volta da cabeça!...

Mas havia mais surpresas...

De um cestinho feito de folhas de palmeira, Babá fez sair três figurinhas com as cabeças enfeitadas e caixinhas nas mãos. Que eram os Reis Magos, era evidente, mas um estava pintado de branco!!!...

-Estii doii vem do Oriente. Esti (explicou enquanto o depunha num barquito com duas velas de pano) é Rei Mago di Lisboa...

Ouviu-se um coro de gargalhadas... E, quando todos, um dia, retornaram com os pais, aquela fotografia, então tirada, virou dúzias, às quais os amigos não negavam alegres exclamações e elogios!

 

O calor fez Teresa recuar o sofá. Mas as recordações prosseguiam.

« Vovô moreu e Vovó foi com eli...», como diria a Babá.

Os anos foram passando entre calor e fortes chuvadas ou lindos dias de sol, às vezes preguiçosos e sonolentos. Corriam com lentidão, saborosos e aromáticos como a fruta madura.

Mamana Babá envelhecera. Ainda embalava carinhosa os filhos e os sobrinhos da Teresa, cantando como dantes:

 

Vem, vem ó Jisu

Vem, vem Salvadô

Dar Tua Luz

Dar Teu Amô

 

Vem, vem ós minino

Dar Fogo e crescê

Com Esprito Santo

Pra elii vivêê

 

Na Paz di seuu diaa

Na Paz di Sinhô

Na Paz dii Homii

Na Paz di Amô...

 

 

Mas os Homi fizeram guerra!

Em certa noite a «trovoada» estalou ao longe...Os «relâmpagos» e «faíscas» cortaram o ar...O medo apossou-se de todos. Entre desilusões, indecisões e incertezas, encheu-se um contentor que até nunca chegou ao destino...

Mamana Babá a tudo assistia triste e chorosa. No momento da partida precipitada, abraçou a todos comovidíssima. Entregou a Teresa um embrulho de jornal atado com um fio. Na pressa da fuga, só no avião foi aberto e a comoção foi tão grande que a voz se lhe embargou, regando de lágrimas as mãos e o lenço...

 

Os olhos de Teresa estavam marejados...

Um estalido da lenha trouxe-a à realidade. Desenvencilhou-se da manta e foi-se deitar.

Porém, antes de adormecer, prometeu a si própria que, apesar de estar só, iria fazer o Presépio como nos anos anteriores, voltar a colocar amorosamente nas palhinhas o Menino Jisu negrinho, de fraldinha branca presa com um alfinete, que retiraria da mesma folha de jornal em que o recebera, embrulhado pela mamana Babá ...

 

Ele vem e não tem raça nem cor.

Ele vem «de boa vontade»... para todos.

 

-« Naceu pa ficá no coração di todo o genti di  Mundo ...»

 

 


Natal 1999

 

(*) João de Deus (Cartilha Maternal - 18ª edição, 1906       "Oferecido às Côrtes de 1888, em signal de reconhecimento"         (ortografia modificada)

Maria Ezequiel

 

 
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