Não
precisava ler o número gravado no muro. Rosita
conheceu o portão verde muito antes de entender
de algarismos. Transposto, seguiu pela ruazinha
calcetada do jardim e subiu as escadas da mansão
da ilustre freguesa de sua mãe.
Ao seu encontro correu o “Lulu” todo
agitado, presentindo já as carícias das
pequeninas mãos que lhe costumavam afagar o pêlo
macio.
A
governanta recebeu o vestido cuidadosamente
envolvido numa toalha de puro e branco linho,
franjada de renda em linha muito fina.
Rosita
nesse dia esperou ... esperou ... e estranhou a
demora.
Costumava
receber rapidamente a devolução da toalha, mais
a moeda preta de vinte centavos como gorjeta.
Esperava-a ansiosa pois ela iria engrossar o
montinho de centavos no velho bule de chá, sem
valor e sem uso, mas que guardava no bojo as
migalhas dos ricos... ouro dos pobres!
É
que, a dona da mansão, porque o vestido e a época
lhe lembraram o “reveillon”, tivera um rasgo
de generosidade! Procurara entre os livros dos
filhos um que estava mais usado, capas gastas e
lombada desaparecida, (até ficava mal entre os
outros, lustrosos e decorativos!) e mandou-o pela
governanta que, comovida com esta acção da sua
patroa, (afinal não tinha o coração tão
empedernido!), lhe juntou meia dúzia de bombons.
¾ Obrigada, Srª. Iria. Minha mãe lhe agradece
quando lá for fazer o pagamento - cinquenta
escudos, mais cinquenta centavos dos avios!
¾ Já agradeceste, Rosita, já agradeceste. Vai
com Deus e recomenda-me à tua mãe.
¾ Farei presente.
Só
o “Lulu”, nesse dia não recebeu mais
festinhas no pêlo! Bem correu até ao portão...
«Afinal de que me serviu abanar tanto a cauda?!
De nada.» E, ganindo com o focinho entre as
grades e os olhos tristes, seguia Rosita a correr
rua fora, levando numa mão a toalha e o livro,
enquanto a outra tapava o bolso da saia... não
fosse algum bombom escapar.
«Seis!
Seis!», pensava ela . «Chega um para a minha mãe».
Que alegria ia no seu coração! Nem se lembrou
que desta vez não levava moeda preta para o bule
engolir!
Se
a Rosita conseguiu colocar os fonemas certos nas
palavras gastas do título do livro, lá leria: A
Gata Borralheira.
Nesse
serão ficou uma bainha por coser! À luz mortiça
da lâmpada de 25velas, a mãe teve que ler o
livrinho enquanto a pequenada, escutando atenta,
se aquecia à roda do borralho...
Finda
a leitura, passados os primeiros instantes de
tristeza porque o livro só possuía aquela história
e, enquanto... o
príncipe e a princesa viveram felizes para sempre...
houve explosão de alegria. Ali à espera sobre a
mesa estavam seis bombons! Os três manos mais
novos logo os “descascaram” querendo o
pequenino comer com “casca” e tudo!
Quando chegou a vez à mãe, ela sorriu: «Guardamos
este e levamo-lo à avó no domingo?» Que «sim»,
anuiram todos e o bombom ficou a salvo numa
caixinha no alto do armário.
Rosita
e Helena trocaram um olhar cúmplice envolvendo a
mãe... E um pires, companheiro do bule, já
desirmanado e órfão de chávenas, com a
porcelana eivada de
risquinhos qual pele curtida e enrugada de avô,
serviu de salva-de-prata na oferta à mãe de duas
metades de dois bombons...
Desculpando-se,
com a tristeza que lhe dava não poder abusar do açúcar,
a mãe cortou para si metade de cada metade...
Os três mais pequeninos presenciaram, não
alcançando a dimensão dos gestos...
Mas
mãe e filhas saborearam enternecidas a doçura do
amor
feito pedacinhos de bombons!
Que doçura!
Julho
de 2003
Maria
Ezequiel
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