Maria Ezequiel

Circuitos do Acaso

 
 

Os consultórios comportam tamanhas esperas que neles há tempo para tudo poder acontecer. 
Não é ficção o que aqui vai. É história, parcela até da grande História, recolhida numa sala de espera, num longo relato ouvido numa conversa, entre as duas cadeiras ao meu lado direito.
Impressionada, registei de imediato algumas frases, mal cheguei a minha casa, penhores de transmissão mais fiel, de mais cor ou mais verdade, em tudo o que eu ouvi, pasmada, para hoje aqui vos poder descrever o meu pasmo.


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O Sr. Teixeira era um rico fazendeiro com casarão em pleno mato, floresta por sua conta e terras de cultivo a perder de vista. Fora levado de Portugal por um amigo, já de idade e solteiro, que lhe deixou por morte o negócio de madeiras. Em terra tão fértil, expandiu as suas actividades e dedicou-se à agricultura e pecuária. Três filhos homens eram o seu orgulho! Estudavam na cidade muito afastada da fazenda. Nas férias davam grandes passeios a cavalo e em casa entretinham-se preguiçosamente em intermináveis jogos de baralho com jovens negros escolhidos entre o pessoal que servia nos campos e nos estábulos.
O mais velho de muito cedo começou a acompanhar o pai nas longas caçadas pelo mato. Porque tinha muito treino, o Sr. Teixeira deixava-o ir com alguns criados conhecedores dos trilhos.
Provou a sua coragem e competência quando um dia, na orla de um milharal, uma fera se preparava para dar o salto sobre a presa. Rápido e certeiro, deixou-a estendida a estrebuchar enquanto se apressava a travar a corrida desordenada e louca de pavor, da mulatinha que ele acabara de salvar. Em padiola improvisada levaram-na para o casarão onde Octávio a entregou aos cuidados de sua mãe, D. Gertrudes. Ela tratou-a dos arranhões e de entorse num tornozelo. Deram parte à família que a veio visitar e agradecer.
Tratada dos ferimentos e do susto, acharam por bem, com o consentimento dos pais, que ficasse ainda por algum tempo, tanto mais que D. Gertrudes se encontrava grávida e a mulatinha lhe ia dar muito jeito nas lidas da casa.
Assim, Flor, que por devoção da sua ama passou as ser chamada de Maria Flor, acabou definitivamente a viver no casarão, prestimosa, obediente e agradecida, cumprindo todas as tarefas que lhe eram confiadas.
Octávio, o seu salvador, era agora o amor secreto de Maria Flor e este não lhe negava olhares furtivos e até cobiçosos...
As advertências da mãe não tinham grande eco porque o pai, com sorriso cúmplice comentava: " Meu filho estuda na cidade mas é filho deste mato!..."
Ora, depois que D. Gertrudes desmaiou ao almoço, por via do seu estado e do muito calor, precisou de alguma vigilância e cuidados redobrados incluindo um pouco de "ar condicionado"!
Maria Flor foi convidada a sentar-se à mesa junto da senhora, com o leque sempre à mão, enquanto ia aprendendo a servir-se do talher, do guardanapo, do copo e, se de início toda essa "ferramenta"a assustou, por fim era com graciosidade que tudo manejava. Vestidinha a preceito, servindo a sua ama, era já uma gracinha que deslizava solicita pela casa qual anjo benfazejo que todos admiravam e respeitavam.
A par do desenvolvimento do bebé no ventre materno, crescia entre as duas mulheres mútua simpatia.
D. Gertrudes apercebeu-se do interesse que Maria Flor manifestava pela estante dos livros de seus filhos. Encontrava-a muitas vezes a folheá-los observando as gravuras que ilustravam os textos. Como cada vez se tornava mais pesado o seu andar, passava o tempo sedentariamente sentada na preguiçadeira do jardim nas horas de menos calor. Teve então a ideia de ensinar Maria Flor a ler e escrever. Ficou espantada da facilidade com que ela assimilava tudo o que lhe era explicado.
O entusiasmo de ambas redobrou. Passados meses lia, escrevia, operava, desenvolvia cálculo mental, tinha conhecimentos de História, Geografia, Gramática... pelo que lhe foi sugerido ir à escola da Missão onde o missionário a propôs a exame da 4ª classe.
Os bons corações do Sr. Teixeira e sua esposa já tinham destinado mandá-la estudar.
Numa madrugada a bebé nasceu. Linda, de pele branquinha, loura, de olhos azuis, qual pai, a contrastar com a cor morena e olhos negros dos três irmãos que saíam à mãe. Por isso foi baptizada com o nome de Alva.
Passados dias, quando tudo parecia correr bem, a febre apanhou D. Gertrudes de surpresa e uma biliosa encarregou-se de fazer os estragos precisos até lhe fechar os olhos para este mundo. A consternação não teve limites e Maria Flor tomou a seu cargo a bebé, como se mãe fosse, cuidadosa na ama de leite que lhe procurou entre as jovens mães negrinhas, vizinhas da sua própria mãe, numa aldeia situada a pouco menos de dois quilómetros. Mimou-a com todo o amor que poderia dar. Seu coração ficou de luto para sempre.
O criado que servia à mesa, persistentemente distribuía o talher como era habitual, deixando em vão o lugar que fora da dona da casa. E quando interrogado do porquê, avançou dizendo que senhora estava viva até substituição. O amo entendeu o sentimento do seu serviçal. Ficou-lhe grato pela dedicação mas o lugar vazio incomodava-o. Perdeu o tom jocoso com que levara a vida até então, emudecendo a pouco e pouco. Perdeu o apetite; dava passeios pela noite; começou a queixar-se de dores imaginárias; passava horas a fio silencioso sentado num sofá e deixava que na fazenda tudo corresse mais ou menos ao Deus dará... Já não dava ordens e só a dedicação de Jóe, criado que o vira casar, fazia com que os trabalhos prosseguissem.
Em casa nada tinha parado devido ao zelo da mulatinha. Tratava o Sr. Teixeira, envelhecido pelo desgosto, como um pai e tudo fazia para lhe minorar o sofrimento.
Entretanto, Octávio, preso de amores na cidade, desprezou férias sucessivas e por lá andou anos lectivos esquecido das caçadas. Mas por qualquer motivo os amores esfriaram e deu-se conta que os resultados dos estudos estavam abaixo de medíocre. Como filho pródigo, arrependido, pronto a pedir perdão, volta a casa e descobre que a fazenda ia de mal a pior e soçobraria a curto prazo se alguém lhe não deitasse a mão. Aquele "filho deste mato" meteu ombros à tarefa. O pai rejubilou e rejuvenesceu com a decisão.

Num lindo domingo de Julho houve grande alegria na Missão. Maria Flor trajando modestamente, sem folhos nem rendas, subiu ao altar pelo braço do Sr. Teixeira ao encontro de Octávio irrepreensivelmente vestido de fazendeiro. Tudo foi tão simples e eloquente quanto a maravilhosa homilia do missionário. Só Alvinha, agora com três anos, alterou o protocolo da cerimónia por ter deixado cair as alianças! Presta as apanhou e travou a corrida da bandeijinha que rodava... rodava em círculos pelo chão...Entregou tudo com tal graça e gargalhadinhas inocentes que fizeram desanuviar o ambiente e quebrar o que podia ter sido o senão da festa!
Estava concretizado o sonho de Maria Flor! O seu coração transbordava de felicidade! Agora chamava-se Maria Flor Macato Teixeira! E Octávio não se sentia menos feliz!
Decorrido um ano o Senhor Teixeira era avô de uma netinha, Elisa, que veio perpetuar o nome da avó materna. Mais uma vez as famílias se juntaram em alegria e felicidade no baptizado da menina.
Lisinha cresceu traquina e saudável tendo por companheira de brinquedos Alvinha, sua tia.

Uns anos se sucederam com a maior normalidade.
Entretanto, o segundo filho do Sr. Teixeira mostrou vontade de passar umas férias no Brasil com um amigo de estudo. O pai cedeu aos seus rogos acolitados pelos irmãos. Tão bem se deu que por lá ficou constituindo família e singrando na vida.
O mais novo, Raul, estudando com brio levava vida calma e nas férias ajudava o irmão.
Os proventos chegavam e sobravam para fazer crescer o património investido na cidade em propriedade horizontal.
Alvinha e Lisinha cresciam em segurança na tranquilidade e na paz que Maria Flor tão bem sabia gerir com personalidade desvelos e muito carinho.

"Mas um dia ...
Há sempre um dia..." (diz a canção...) Um tio materno passou de visita e confidenciou-lhe:
- Fala-se que vai haver guerra...
- Guerra?!...
- Guerra da independência!...
- E que vamos fazer meu tio?!
- Para mim... morrer... que já não posso fugir...
Ela ficou mais que apreensiva. Bem sabia o que ia em países vizinhos... Seria que ia acontecer o que o seu avô vaticinava quando ela era menininha?!... "Mais cedo ou mais tarde isto vai virar...Eu já não vejo. Muitos brancos vão fugir e morrer, mas negro acabará com mais fome e mais doença."

Durante dias foi atormentada pela incerteza das palavras do tio, até contar ao marido que não se mostrou incrédulo mas, confiado na Providência, continuou a vida, embora a projectar o que de melhor poderia fazer. Era difícil tomar decisões!... "Não há razão para nos fazerem mal. Somos daqui." - opinava Octávio sem grande convicção...
Raul não era da mesma opinião. Tinha terminado o ano lectivo e com os ouvidos cheios do "diz-se... diz-se" da cidade, não deu notícias que pudessem tranquilizar. A preocupação foi-se instalando.
E as férias foram rodando...
Os preparativos de um novo ano escolar se aproximavam e tudo estava bem planeado. O apartamento, que até aí fora habitado só por Raul, ir-se-ia encher com a ida de Elisa, Alva para frequentar a escola, a tia Helena, irmã de Maria Flor, seu filho de quatro anos e o marido Lelo Mussá que a esse tempo já trabalhava na cidade.
Helena, boa dona de casa e letrada com diploma da 4ª classe, estava mesmo a calhar para a tarefa que de boa vontade aceitara. Mas... findas as férias, os boatos engrossaram e os amigos da cidade anunciaram a Lelo Mussá que tudo se ia complicar. Adiaram a saída para pensar e estarem atentos aos acontecimentos que se viessem a desenrolar. Raul teve receio de ir só...
Até que... foi como acender um fósforo!... Várias fazendas foram atacadas e o mesmo aconteceu ao casarão! Parte foi destruída pelos incendiários e a outra roubada desde a despensa ao recheio dos móveis com o prejuízo também destes transformados em sucata. Octávio foi amarrado e levado. Porquê?... Para quê?... E para onde?... Horrorizados, foram ameaçados de nova "visita" que não se fez esperar. Catanas e barras de ferro arrombaram portas e estilhaçaram vidraças. Ensurdecedor era o alarido que acompanhava a destruição.
Mais uma vez na vida, Maria Flor fugia de pavor, só que agora as "feras" eram outras...
Bem presas nas suas mãos levava as meninas para as esconder numas palhotas desabitadas longe do casarão. Passaram aí a noite a rezar até as crianças caírem de sono.
Manhã cedo regressaram aos destroços do que fora uma casa!
De olhos esbugalhados, lesta escondeu os rostos das meninas no seu regaço e caiu desmaiada!
Jóe, depois de a reanimar, abriu com ela duas sepulturas para pai e filho que tinham sucumbido a golpes de catana e engoliram num soluço a cena macabra das suas cabeças espetadas e içadas na ponta de paus, como mastros de aviso.
- Quem eram eles, Jóe ?...
- Não sei. Não conheci nenhum. Alguns falavam outra língua!
E Jóe exteriorizava a sua dor com gritos de perder o folgo a ecoarem longe...
- Cala, Jóe, que te ouvem!...
Mas o trabalho dos malfeitores tinha acabado.
As crianças, abraçadas, caíram num mutismo confrangedor! Com que palavras se poderá descrever o sofrimento, a angústia desta mulher e o pânico destas crianças?... E também o respeito, a dedicação, a coragem, a generosidade deste Jóe?...
Durante vinte e quatro horas esconderam-se no mato por perto do casarão. De volta a este, procurando alguma comida, assistiram toda a noite ao clarão de grandes incêndios que não conseguiram bem localizar.
No dia seguinte dirigiram-se à aldeia dos seus familiares na procura de companhia onde pudessem extravasar os seus sentimentos, a sua dor. Da aldeia só encontraram cinzas e cadáveres carbonizados. Teria sobrado alguém?... Se sim, tinham fugido... O ar, envolto em fumo, cheirando a queimadas e carne assada... Um horror! Naquele silêncio assustador só o crepitar do fogo lento a fazer desaparecer as últimas ruínas!
Da casita que fora de sua mãe... nada. Só os restos mortais dela, de dois irmãos e do filho de Helena. E esta!... Onde estaria ?...
Jóe deixou-a imóvel no meio da dor e da fumaça...Trouxe do casarão duas enxadas e mais uma vez abriram sepulturas... Pela noite que um belo luar iluminava, regressaram com o coração desfeito, sem forças para andar... Com a mente embotada, sem alento... nem para rezar!...
Partilharam alguma fruta do pomar que escapara ao vandalismo. Fizeram trouxa. Previdente, Jóe arrecadou um isqueiro. Meteu num saco uma panela, uma cafeteira e pouco mais. O carrego não podia ser grande. Maria Flor guardava no seio, lugar julgado mais seguro, os documentos de identificação dela e das crianças - conselho gritado pelo marido na hora em que o separaram com tanta crueldade - e embrenharam-se no mato.
De noite andavam empurrados pela força do medo sem direcção nem destino. De dia escondiam-se como podiam tentando, com o silêncio, não chamar a atenção.
Um rio, cujo nome não sabiam, lhes dava água para cozinhar folhas, raízes e ervas. Porque Jóe, no desejo de ajudar, voltara à fazenda esperando levar algum animal de capoeira, mas já nada encontrou.
No fim de uma semana pouco terreno tinham andado porque as meninas lhes atrasavam o passo e "acamparam " por fim, para descansar e serenar, como se tal fosse possível!
Jóe fez nova tentativa mas antes de chegar à fazenda, um súbito mungido fê-lo estremecer... Acocorado, viu uma vaca bebendo num braço do rio!... Esperou... esperou... e, sentindo-a só, teve uma ideia. Amarrá-la ali e ir buscar outra aos estábulos... Foi tudo miragem! Nem mais uma só encontrou viva enquanto das roubadas havia rastos em todas as direcções...
De animais só o "Tucano", esfomeado e enfraquecido, mal gania preso à corrente da casota. Desprendeu-o e voltou ao "acampamento" onde três dias depois foi recebido com um suspiro de alívio de Maria Flor. A vaquinha passou a dar leite e a servir de meio de transporte às meninas.
"Tucano" aprendeu a caçar ratos e bicharocos pelos arredores e com o seu faro e latidos denunciou algumas cobras que por ali deambulavam. Sorte que não era região de animais ferozes ou crocodilos!
O tempo lentamente foi passando em sobressaltos, sem compadecimento com tamanha situação!
A mata densa crescia ao ritmo da chuva e do calor, dando-lhes o esconderijo, a sombra e alguma coisa para cozinhar. O rio era a sua sobrevivência.
Quanto tempo teria passado desde que fizeram do sítio sua morada?...
D. Gertrudes ensinara-lhe que o ponto de interrogação nunca se desenhava mais alto que o "t" ou o "l"... e devia ficar enroladinho com perfeição... Mas os pontos de interrogação que ela agora via tinham a dimensão do firmamento... e tinham a forma das curvas largas ou apertadas do rio que corria veloz perfurando a floresta de arbustos enleados a esmo!...
"Onde estará o pai da minha Lisinha?!... O irmão da minha Alvinha?!..."
Onde estaria o seu amor, o seu sonho, tudo transformado numa realidade tão cruel?... Onde estaria ele? Que lhe teriam feito?... Profunda incógnita... Tudo era tão difícil de imaginar...
- O pai vem ter connosco, mãe?
- Se Deus quiser, minha filha... - suspirava com ar triste e esperança perdida...
- Mãe Flor, achas que Ele quer?!...
- Tua mãe, Alvinha, dizia que a esperança é a última a morrer...
E deixando-as sob a vigilância constante do velho Jóe, afastava-se para engrossar com lágrimas o caudal do rio e aumentar o sussurro da floresta com o seu lamento...
Jóe ausentou-se por vários dias que pareceram anos a Maria Flor. Na volta trazia ananases duma qualquer plantação e notícias pouco agradáveis. No seu dizer , os campos estavam " semeados " de tropas portuguesas que, em presença da barbárie encontrada, se descontrolaram derrubando pomares inteiros e que...alma viva... era alma morta!...
Medo!... Mais medo!... Mais incerteza!...Mais dor!...
De noite tudo era sossego. Habituados já ao ruído constante do rio, ao murmúrio do vento na copa das árvores, ao ruge-ruge das aves e outros animais, não esperavam ser despertados numa madrugada pelo ronco de motores e tiroteio esporádico. Até a tranquilidade do silêncio lhes foi roubada! Todas as madrugadas passaram a ser iguais a essa! Porém, numa tarde, foram descobertos por tropas a pé que iam desbravando terreno à sua passagem... Ficaram estarrecidos!!!...
- Tenham dó!... - implorou Maria Flor, agarrando protectoramente as suas meninas.
- Sai daqui, velho negro, antes que te estoire a alma!... - gritou um soldado.

- Tenham dó!... - continuava suplicando Maria Flor.
- Dó de quê?!... - gritou irado.
Atentando então em Alvinha bradou:
- Onde roubaram essa menina?! Seus negros miseráveis!!!...
- Ninguém a roubou. É minha. Vivíamos numa fazenda que foi destruída....
- Estamos fartos de mentiras! Toca a andar à nossa frente.
E com um encolher de ombros acrescentou: "Podem-nos fazer jeito..."
Enrolaram os pertences e caminharam empurrados por risos de escárnio qual Cristo a caminho do Gólgota!
- Tragam a vaca. Dá bom bife! O cão não é preciso.
Na mira da arma o animal caiu por terra. As crianças deram um grito logo abafado pelo olhar do atirador! Mais à frente, porque impossibilitava o ritmo da marcha, à vaquinha foi cortada a corda ficando metade no seu pescoço e a outra metade pendurada da mão do velho Jóe que continuou segurando-a silencioso sem olhar para trás... Depois de uma boa hora de marcha, Alvinha queixou-se dos pés e das sandálias em ruínas:
- Mãe Flor, as tiras das sandálias romperam-se...
- É pá, aqui "mãe " é "flor "!!!... - escarneceu um soldado.
- Cala, filho da... Toda a mãe é flor, seu galego!
E olhando Lisinha com os pés feridos, agarrou-a por um braço. Num gesto rápido, colocou-a às cavalitas. "Agora sou eu a tua vaquinha!..." A criança sorriu.
- É pá, estás dado às boas acções! Olha que ficas santo!
- Vais aos altares!
- Vais é ter medalha de honra!...
- Caluda -- disse o que parecia comandar - cuidado com a língua!
Daí a pouco, Alvinha já sem sandálias também, ia ao colo de um dos tropas! O que comandava abria de vez em quando um mapa, consultava a bússola, dava ordens e continuavam a desbravar terreno. Pararam uma vez. Abriram as mochilas repartindo os enlatados com os quatro "capturados".
Por fim encontraram-se na margem da mata abrindo-se à sua frente pequena clareira com várias tendas de campanha e dois jipes. Três picadas saíam dela furando a floresta.
- O que fazemos com eles?
- Leva-os tu ao chefe, já que vais a fazer de muar!!!...
Assim, foram apresentados ao dito chefe com divisas, mas das quais não conheciam a patente. E o interrogatório começou:
- Como te chamas, velhote?
- Jóe - respondeu o interpelado.
- Jóe quê? Diz o resto...
- Só Jóe, senhor. - disse em tom respeitoso e gesto de deferência.
-- O velho é educado! - comentou um dos presentes.
- És pai dessas meninas?! - troçou, apontando os cabelos louros de Alva.
- Não, meu senhor, sou avô delas e pai desta senhora. - mentiu.
Risos!!!
- E tu, ó lourita, o que és a esta senhora?
- Sou cunhada.
Espanto!
- Ela chama-lhe "Mãe Flor"... - riu outro dos presentes...
- Raios partam! Tanta mentira!!!... O que é que está no saco?...
Jóe ia a abrir. Mais ágil, um tropa fez-lhe um rasgão ficando à mostra o recheio: panela, cafeteira, uma catana...
- A catana é para quê, meu safado?...
- Para apanhar raízes, cortar lenha, e defender das cobras... - respondeu Jóe.
- Agora deve estar a falar verdade.- anuiu aquele a quem Lisa ficou a chamar "O Vaquinha".
- Porra de vida! Dá-lhes comida e onde dormir. Depois se verá!... - e entre dentes - "podiam ser as nossas filhas... Gaita!"
Porém, um dos tropas viu que do seio de Maria Flor assomavam quaisquer papéis com certo grau de sujidade...
- Mostra o que trazes aí escondido... Mostra, vá!
A ordem foi obedecida. Ela aflita... Ele desconfiado...
Desembrulharam e todos espreitaram a papelada... Viraram e reviraram... Leram e releram...
- Por favor! Não rasguem, senhores!...
Bem esquadrinhados, foram retribuídos em jeito de desprezo...
Maria Flor, aliviada, dobrou tudo e guardou no mesmo "cofre". Mas trazia com ela outro "cofre" mais fácil de disfarçar atado à cintura e preso com um alfinete ao cós da saia. Esse tesouro eram algumas notas e papéis com que poderia movimentar conta em nome do marido e dela. De que lhe serviria ?!!! Ali!!!... Em pleno mato?!!!... Nem sabia a que distância estava de qualquer meio civilizado! "Mas não posso perder isto! Tudo pode acontecer!..." pensava...
Foram alojados. Tinham por tecto um toldo e dormiam sobre uma lona.
Residência de luxo!!!...
Todos os dias, O Vaquinha vinha trazer comida enlatada e Jóe descobriu, nas suas viagens de explorador, um campo com mandioca a que os soldados chamavam "batata de preto". Mas logo que foi cozinhada naquela abençoada panela, o produto foi provado com alguma repugnância por aqueles a quem já chamavam "seus benfeitores" e ficaram a gostar! Misturavam-lhe as sardinhas enlatadas, o feijão e o molho e ... ficava divinal!...
As meninas já eram as mascotes! O Vaquinha emprestou um pente - que de nada lhe servia! - um espelhito de bolso e as crianças, penteadinhas, enfeitadas com os bonés da tropa, iam posando para algumas máquinas que apareceram.
Maria Flor impunha-se pelo seu porte, comportamento e educação, sempre debaixo da vigilância apertada de Jóe. Assim foram afastando os olhares "gulosos" e piropos atrevidos...
Na clareira acertou o seu calendário já perdido na memória.

Todos os dias saíam e entravam os jipes mais ou menos carregados de tropa bem armada. O que por lá faziam era fácil de imaginar! Ali, havia grandes reuniões, berravam-se ordens... por vezes pragas e no meio da violência de alguns também havia os mais calmos prontos a serenar ânimos. Muitas vezes vinham feridos. Eram tratados por um enfermeiro- tropa e a pouco e pouco Maria Flor começou a sentir-se útil ajudando em pequenas tarefas.
Sempre que podia O Vaquinha vinha ao toldo conversar. Ganhando a confiança do grupo soube e interiorizou toda a verdade daquele drama! De coração sensível conseguiu obter licença para que fossem levados dali. Assim, numa madrugada, dois jipes percorreram picadas e mais picadas depois boas estradas, levando soldados e o grupinho. Fizeram escala demorada em mais dois acampamentos e chegaram por fim à cidade cinco meses depois de saírem do casarão! Agora tomariam o rumo que melhor lhes conviesse...
Maria Flor sentiu renascer a esperança! Não sabia bem que esperança... mas era esperança!

O Vaquinha aconselhou Maria Flor a ir para Portugal visto ter possibilidade de levantar dinheiro do Banco. Ela via entraves. O não saber do paradeiro do marido, este não ter documentos nem dinheiro... A quem e onde se dirigir em Lisboa?!!!...
Ao despedir-se, o Vaquinha entregou-lhe uma carta e um cartão. Neste ia o seu nome, a direcção da mãe, algures em Trás-os-Montes e o número do telefone da cabina pública da sua terra. A carta dirigida à mãe pedia que os recebesse como a ele próprio. Foi com muita emoção que todos se despediram! O mais certo era jamais se verem pois ele regressaria em breve ao mato. Era só o tempo de recuperar forças e voltar a ir substituir outros companheiros naquele ou noutro lugar. Ofereceu dinheiro às meninas e uma porção de chocolates. Todos se separaram com profunda tristeza.

Mais uma vez Maria Flor sentiu o coração vazio! A sensação de se encontrar só e sem amparo!
Foram percorrendo a cidade desconhecida, habituados a viajar sem norte ou finalidade...
Confiante, foi ao Banco. Mas não era esse. Foi a outro. Mas... "por agora está tudo cancelado!"
- E quando poderei levantar?
O funcionário olhou-a por instantes. Em tom seco e informal aventou:
- Talvez nunca!...
Maria Flor entupiu. O que levava no "cofre" não chegaria para muito. Com o que O Vaquinha presenteara as meninas procurou vesti-las decentemente num estabelecimento pouco recheado mas os preços eram proibitivos. Havia várias lojas definitivamente fechadas. Foi comprar pão e fiambre. Só havia pão. Forneceu-se com alguma lataria. Ao passar por um caixote do lixo teve a curiosidade de ver o que estava em sacos fora do recipiente. Verificou que era roupa boa e muito aproveitável. Havia quem partisse e se desfizesse de algum vestuário. Ela beneficiou! Todos se vestiram e até o Jóe ganhou calças e camisa "novas"!
Agora a realidade era diferente mas o dramatismo era idêntico...
Jóe já não tinha catana... Ficara "retida" na clareira! Mas de que lhe serviria?! Já não havia cobras nem raízes... O rio também ficara para trás!...
- Mãe, tenho sede. - queixou-se Lisa.
Maria Flor tocou a campainha dum rés-do-chão. De dentro espreitaram com a janela fechada.
- Água, minha senhora, por favor, para estas meninas...
A senhora recolheu-se por minutos. Abriu a janela só o suficiente para passar o copo. Mandou esperar. Fechou a janela e voltou com um garrafão. "Levem esta e voltem se for preciso mais".
- A senhora sabe de alguém que precise de quem ajude em casa? Eu sei cozinhar...
Nem terminou a frase...
- Não preciso nem conheço...- resposta seca e amedrontada.
Por vários dias, bancos do jardim serviram de leito para descanso e de noite entradas de prédios foram abrigo do cacimbo!...
Maria Flor não mendigava sustento. Mendigava trabalho que não lhe davam... Aqueles olhos muito azuis e o cabelo lourinho de Alva deixavam as pessoas intrigadas... Eram tantos os motivos para a desconfiança que o velho Jóe deixou de as acompanhar e esperava-as sempre em sítio combinado.
Num dia em que a esperança tinha esmorecido, Alva e Elisa afastaram-se com demora. "Onde estariam?"
- Estivemos no murinho da escola a ver as meninas brincar... - disse Alvinha com olhar triste.
O coração de Maria Flor bateu forte. "Amanhã vou à escola. Será que não a aceitem?! Ficaria aí melhor que acompanhar-me..."
Contou os trocos arrumados no bolso. Eram mesmo já só trocos!...

Esperaram no murinho até as crianças saírem. Depois arrancou decidida para a porta do edifício e pediu para falar com a Sr.ª Directora. Ao entrar na sala...(ó acaso!) iam ser recebidas pela mesma pessoa que lhes matara a sede naquela tarde escaldante em que chegaram à cidade! Maria Flor estacou. "Como serei recebida?..." Recordou a janela entreaberta onde só o copo cabia... A recusa de informação bem patente na expressão ao entregar-lhe o garrafão da água... A janela fechada nervosa e apressadamente...
- O que deseja?- perguntou a professora continuando a escrever.
Maria Flor disse ao que vinha.
D. Emília olhou por cima dos óculos, convidou- a a sentar e continuou ainda a escrever... o tempo suficiente para que as dúvidas apertassem o coração... "O que irá acontecer?!... Senhor, acode aqui!" A caneta continuava deslizando. Via-se que queria terminar o que tinha em mãos. As três se interrogavam, mudas, na expectativa...
Pousada a caneta e arrumados os papéis, interrogou-as com o olhar... e reconheceu-as! Perguntou pelos documentos. Demoradamente intervalou a sua verificação com sentimentos de desconfiança e alguma indecisão. "Negar a matrícula...não." Conhecedora do meio achou tudo muito estranho! Atentamente leu os documentos da mais nova. Mais baralhada ficou! Que confusão de parentescos!
Nada passou despercebido a Maria Flor que se apressou a informar ser mãe de Elisa... Não continuou pois teve de esclarecer porque Alva ainda não andara na escola se já tinha oito anos!...
"Mas eu sei ler bem. Foi a Mãe Flor que me ensinou."
A expressão "Mãe Flor" fez D. Emília franzir a testa e com pestanejar intermitente abanou a cabeça incrédula. Frustrada, por se sentir tão confusa, acometeu impulsiva:
- A sua morada, por favor.
As crianças, de mãos dadas, ampararam-se como que agredidas.
"Não temos casa. Pernoitamos no jardim ou nas entradas dos prédios... Em vão peço trabalho..." E mostrou na palma da mão os trocos que lhe sobravam.
Fez-se silêncio. Ao fundo da sala, encostado à ombreira da porta, o marido de D. Emília que viera buscá-la permanecia discreto, silencioso e interessado. D. Emília expectante. Mãe Flor, de rosto contraído pelo martírio que se lhe impunha de rememorar toda a tragédia, foi falando pausadamente, sacudida por tanta cena que quereria esquecer, esfregando nervosamente as mãos, interiormente inquieta pelo receio de não ser compreendida ou até de poder passar por impostora.
Tudo foi narrado de olhos no chão. Tudo veio à superfície com tal postura de seriedade, veracidade, sisudez e sofrimento que nenhuma dúvida podia restar.
Maria Flor ergueu os olhos chorosos e pousou-os nos de D. Emília marejados... e gotejantes! Um soluço vindo do fundo da sala denunciou o senhor Gomes que se escapou porta fora...
Foi agora a vez de Maria Flor ficar perplexa!...
É que, na história deste casal havia dois filhos que morreram na mesma altura, pelo mesmo "motivo", numa fazenda de uns amigos onde tinham ido passar férias!...
D. Emília não estava só...
Maria Flor também não...

Nessa noite já as crianças dormiram num fofo colchão, em lençóis lavados, com banho tomado e pijamas novos!
Tristeza e alegria fazia Maria Flor rir e chorar sobre a travesseira no quarto ao lado!
No fundo do corredor, num quartinho arejado e limpo, dava Jóe graças a Deus pelos amigos que os acolheram no coração!
Nesse fim de semana quis o casal levar todos a passear. As crianças não se mostraram interessadas. Saudosas do conforto duma casa, preferiram mergulhar nos livros de histórias, fazer construções com os "Legos", vestir e despir os fatinhos novos, mirando-se ao espelho do guarda-fatos!
Difícil foi habituar os pés às sandálias e aos sapatos!... Descalçavam-nos e guardavam-nos em qualquer cantito que achavam azado!... Maria Flor advertia-as mas o casal compreendia.

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A vida passou a ter o ritmo normal. D. Emília e marido encantados com a alegria que as pequenitas trouxeram à sua casa! Era uma agitação serena, tranquilizadora, a que já não estavam habituados e lhes dava gosto de viver. Elas com os livros, pastas, canetas, lápis, tintas e tantos, tantos companheiros para brincar!... Era um mundo novo até aí desconhecido que as embriagava de felicidade! Só turvado pelos pesadelos de Alva... Acordava a meio da noite a gritar e ia-se aconchegar na cama da Mãe Flor... "Era um rio a correr com muita força e cheio de catanas!..." Quando chegava a hora de se deitar... tinha medo de adormecer!...
Jóe fazia recados. Ocupava-se das plantas e da limpeza do jardinzinho que emoldurava a casa. Maria Flor tomou a seu cargo a parte doméstica. Ela não aceitava remuneração pelo seu trabalho. Tudo o que fazia lhe era compensado pela alegria e reconhecimento do bem que possuíam. Nem D. Emília era capaz de a afrontar com algo que pudesse induzir um pagamento salarial. Entendia que ela tudo merecia. Todavia, não queria ficar a braços com a sua consciência em relação a essa mulher tão eficiente, dedicada, agradecida e corajosa.
Convenceu-a a estudar à noite e com o tempo conseguiu-lhe emprego como auxiliar de limpeza numa instituição.
Também Jóe recusou, com a mão escondida atrás das costas, quando o S. Gomes lhe fez a primeira oferta.
- Ó senhor Gomes, eu tenho tudo!
- Não há ninguém que tenha tudo, Jóe...
- Pensam assim os que nunca tiveram faltas, senhor!
Só aceitava com um sorriso, os presentes de Natal e outros oferecidos pelas meninas...

Porém, nem o tempo nem o conforto do agora faziam esquecer o ontem. A saudade estava sempre presente. A saudade e a mágoa da ausência do que ficara prisioneiro eram espinho no coração de todos. Durante anos foi procurado. Foram em vão todas as tentativas do Sr. Gomes que pesaroso, um dia, deu por findas as buscas.


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As crianças cresceram. Eram agora jovenzinhas a despontar para uma vida de estudo mais responsável.
Jóe faleceu. Pouco depois fez-lhe companhia o Sr. Gomes.
D. Emília, amargurada com o desaparecimento do marido, minada pela falta dos filhos, resolveu regressar a Portugal. Trouxe com ela as duas "afilhadas" (como eram conhecidas no meio).
Ficaram a viver em Lisboa onde o casal comprara em tempos dois apartamentos a pensar nos filhos. Ocuparam um e alugaram o outro. Em férias iam até à Beira arejar a casinha, remodelada, que fora de seus pais. "É saúde para as meninas e conforto para mim..." dizia.

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As vidas seguem o rumo implacável do tempo em corrida para um futuro sempre imprevisível. Cada suspiro quando se ouve já passou. O lamento não alivia nem gera nada de positivo. O recordar só apoia se for com os olhos no amanhã. Maria Flor caminha para o futuro de coração forte, resoluto, perseverante, alimentando uma luzinha de esperança que não quer sentir abafada... Deixá-la extinguir seria viver-morta.
Dividida entre as meninas e o marido que o coração procura... fica para continuar a procurar. Fica, porque sozinha se pode movimentar melhor e ir... Ir para o incerto, atrás de uma ilusão?... Que importa! Junta as suas economias e parte... Parte rumo ao norte de onde viera. Instala-se noutra cidade. E porque toda ela respira virtudes e virtude, encontra trabalho. Toma conta de duas crianças e a avó velhinha enquanto os patrões trabalham.
Nos fins de semana "vira detective"...
No quartel, em oficinas, hotéis, construção civil, instituições, bares, correios, tudo é passado a pente fino...
Tenta anúncios nos jornais e apelos pela rádio...nada!
Assim leva meses!
Tantas são as diligências que passa a ser conhecida nas lojas, nas praças, nas ruas, nas famílias...
Não desiste. Podia ser que um dia algum vento soprasse a favor... Fez bem. Um dia soprou!
Um desconhecido abordou-a na rua. Receosa, não acreditou no que ouviu! Era bom de mais! Ele e Octávio tinham sido companheiros de infortúnio. Sabia bem o seu nome. Todos os dados acerca da família estavam certos. Mostrou os sinais visíveis de ter sido torturado: sem mão direita, sem unhas na esquerda, cicatrizes num braço e no pescoço!... Octávio estava entre cinco que conseguiram fugir quatro meses antes de serem libertados. Dos outros só sabia o paradeiro de um, mas esse não lhe sabia dar notícias. Viviam com receio de falar querendo esquecer o passado.
Maria Flor entrou no seu quarto. Pouco faltou para gritar: "Ele está vivo!... Ele está vivo!..."
Mesmo assim a dúvida martelou-a toda a noite..."Já lá vão tantos anos! E onde, onde estará agora?!..."
Foi espreitar a conta bancária... Vivo estava efectivamente aquando de um levantamento há seis anos atrás...
"Não levantou tudo a pensar em nós!..."
Quis ir até à fazenda mas foi aconselhada a não arriscar. Não se via fim à guerra e aqueles sítios continuavam perigosos. Desta vez desistiu.

"Mãe, vem-te embora!"
"Mãe Flor, não te esqueças de nós!"
Eram os apelos que chegavam dos longes do Atlântico! As saudades apertavam. As economias já quase davam para a viagem... "Falta pouco para vos ver... Depois volto mais um tempo e... ficarei aí para sempre."
Pobre Flor! Como ela não pensava, quem pensava que do lado de lá do "mesmo Atlântico" iria haver um "25 de Abril"!... Foi apanhada de surpresa na confusão da mudança.
Agora, era um mundo a desfazer-se em massa. A sua patroa dizia chorosa : "Nós vamos embora mas voltamos, Maria Flor... É só ir levar as minhas filhas e a minha mãe... Podes ficar aqui ..."
Mas, mais um tempo... e todo o recheio da casa saiu arrumadinho em contentores...
Ficou ela, um colchão e meia dúzia de tachos!...

Desiludida, só viu luz na fuga, do Norte para a capital...
Havia os que vendiam tudo! Havia os que deixavam a casa mobilada e com chave na porta!
Conversas, nenhumas! Tudo em passo acelerado rumo ao cais. Havia barco para ir até à capital. Não se podia perder tempo. Depois, Deus diria!
Maria Flor estuga o passo e embrenha-se naquele atropelo!... No barco, só espaço para o seu corpo enrolado sobre a malita e a pequenina carteira pendurada ao ombro...
O cais da capital recebe todos. Alguns com fome, desidratados, doentes... Ela é do grupo que o hospital acolheu! Também ali não faltava a confusão! Mas teve assistência, comida e dormida.

Voltou às ruas de Luanda, sem eira nem beira e o pé-de-meia a emagrecer!...
Onde empregar-se?! Como ela, vadiava muita gente! Tudo andava apressado! Ninguém atendia ninguém! Os rostos traduziam bem as preocupações!
Até que mendigou a alguém desconhecido o maior favor que pediu na sua vida: " Se a senhora vai partir, ponha-me esta carta no correio em Lisboa... O Senhor lhe pagará."
A interpelada recuou. "É para as minhas filhas..." acrescentou em pranto...
A senhora condoeu-se e guardou na carteira.
Mais um mês sem saber o que pensar... e o dinheiro a esgotar-se no "cofre"!...

Numa tarde, empurrada pelo acaso, vai até ao aeroporto. Não sabia que ia encontrar tamanho pandemónio!!!...
Centenas de pessoas sentadas e deitadas pelo chão ( assentos esgotados!) numa bagunça de malas, sacos, embrulhos, e toda a espécie de bagagem, esperavam (muitos há semanas!) por um avião...
Viam-nos aterrar e levantar com o bojo carregado de gente, de carga e de sofrimento! Se este tivesse peso... ficariam colados à pista!
Falou com várias pessoas. O que viu e ouviu fê-la tremer e temer pelo futuro. A sala andou-lhe à roda! Sentou-se nos calcanhares, encostou a cabeça a uma coluna e fechou os olhos. "Tudo acabou aqui!" repetia, repetia intimamente, ao ritmo das pulsações! Assim ficou horas. Parada, surda ao barulho ininterrupto da multidão e aos apelos e informações incessantes dos altifalantes!
Parecia extinto o último reflexo do fogo da esperança que sempre a fortalecera... O desalento era tão grande que desejava ser capaz de parar o pensamento!...
De repente, teve a sensação de que alguém a fitava insistentemente... Na sua direcção caminhava, em complicado labirinto, o Fonseca, o tal companheiro do seu Octávio! Nem assim lhe renasceu a coragem. Não articulou palavra. Só ouviu. "Não saia daqui. Volto já". Voltou. Trazia pãezinhos de leite com queijo e uma garrafa de água. "Coma. Amanhã às 6 horas aqui neste sítio. Traga a malinha e os seus documentos. Não falte." E, sorrindo, voltou costas para desaparecer no mesmo labirinto!...
Não era preciso voltar à cidade. Tinha ali tudo, tudo! Há muito que não abandonava os seus pertences!
Incapaz de reagir fez o que lhe fora ordenado.

 

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O avião da Força Aérea ia partir cheinho: tropa, familiares ... e amigos, por certo!
Oscilando no assento, bem na cauda do "monstro", Maria Flor baralhava os sentimentos de tristeza, alegria, gratidão... Tudo se fundia num doce bem-estar que lhe trazia as certezas necessárias para continuar a viver das recordações que não queria esquecer.
Aterram em Lisboa.
Já fora do aeroporto pousou a maleta e ergueu as mãos agradecida! Os lábios tremiam e a voz não se soltava...
Agora não ia empurrada pelo acaso... Agora ia levada por um acaso que dava pelo nome de Fonseca! Foi tudo tão rápido!...
O taxi já rodava...
"Diga a morada das suas filhas, Maria Flor!..."
Tirou da carteira um papelinho e entregou-o.

Fonseca premiu o botão da campainha e preparou-se para responder...
A voz roufenha do intercomunicador fez-se ouvir:
- O que deseja?
- Falar com a Sª. D. Emília Gomes...
- Quem lhe devo anunciar?
Intima com um gesto a sua companheira... e ela:
- Maria Flor!
- Ahhh!!!
E a porta abriu-se.
Respeitemos... Retiremo-nos...

Parece-nos um milagre! E este nos faz recordar o primeiro - O Vaquinha! Mas há muito que um telefone público tocara em Trás-os-Montes e de lá dissera, à D. Emília que O Vaquinha morrera na guerra e a mãe, que ele oferecera como abrigo, não resistiu ao desgosto...

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A rodinha do tempo vai marcando Verões e Invernos... Outonos e Primaveras...
Lisa contempla o filho...
- Pára! Não puxa, Tavinho!
O bebé gargalha!... Avó Flor tenta abrir a mãozinha papuda que aperta a madeixa de cabelos brancos da "Vovó Mila"!...
Alva sorri, passando carinhosamente a mão pelo seu ventre "inchado", onde se move mais um fruto do amor!...

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Na sala de espera, Maria Flor entretém-se a ler um livrinho que trouxe de casa enquanto aguarda a sua vez. À medida que são chamados , os doentes vão-se escoando pela porta de vaivém que dá acesso ao corredor com vários gabinetes médicos.
Por vezes atenta naquele senhor de longas barbas e cabelos de neve. Não lhe vê a cor dos olhos. Ele mantém-nos escondidos por detrás dumas pálpebras quase serradas. Lembra-se do Fonseca quando lhe vê dedos mutilados... Vê-o, com ar cansado, triste e distante, abeirar-se da janela por duas vezes, num passo incerto, arrastando os pés, vigiado cuidadosamente pelo companheiro, também grisalho, cujo porte lhe faz lembrar não sabe quem!
"Pára de pensar." Diz para os seus botões... "O que passou... passou. Concentra-te na tua consulta que não tem nada a ver com o passado. Irra! Já é tempo! "

Alva e Lisa entram. Sentam-se com um sorriso, esperando que Maria Flor seja atendida. Tavinho e a prima Milinha despegam-se das mães e iniciam as traquinices das crianças...
Por momentos o senhor das barbas olha-as com mais atenção...
"Tavinho, não incomodes esses senhores!..."
"Mãe, ele não tem dedos!..."
"Foi acidente de trabalho, filho..."
Alva procura distraí-los... "Venham cá! Vejam os desenhos do livro da Avó Flor!..."
As barbas brancas estremecem! Esbugalham-se olhos mas entre pálpebras flácidas e inchadas! Latejam têmporas! Tremem as mãos... que se faz luz dentro de si: "São elas!!! Maria Flor!!!" Mas os lábios não descolam...
O companheiro pensa que o ouvido o traiu!... Mas a quase imperceptível perturbação não lhe passa despercebida!...
Os dois grupos entreolham-se...
A recepcionista "canta":
- Faz favor de entrar o senhor Octávio Peres Teixeira.

O grupo de Maria Flor salta das cadeiras...e queda-se...
Maria Flor precipita-se num abraço amparando Octávio, no seu andar vacilante, de mãos estendidas!...

A assistência, anónima, não sabe que testemunha um ALELUIA, no fim de uma VIA SACRA!!!...


Páscoa 2000

Maria Ezequiel

 

 
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